Amores inconsequentes
por Bruno CarmeloUm Homem Fiel se abre com uma boa notícia: “Estou grávida!”, anuncia Marianne (Laetitia Casta) ao namorado Abel (Louis Garrel), com quem vive há três anos. O rapaz esboça um sorriso surpreso, mas ela completa, calmamente: “O filho não é seu. É de Paul. Vamos nos casar. Seria bom se você pudesse tirar as coisas da casa até o fim do mês”. A cena poderia se prestar à comédia burlesca, no entanto os personagens estão sérios, conversando como se discutissem banalidades. Não há trilha sonora, não há ruídos ao redor. Uma luz triste de inverno atravessa a janela, e a textura da película 35mm confere um ar antiquado que afasta o filme do comentário sobre relacionamentos ultracontemporâneos. Este amor mergulha na fantasia descolada do tempo: se não fosse pela presença de um smarthphone aqui ou acolá, poderíamos acreditar que os personagens vivem décadas atrás.
O filme surpreende pelo equilíbrio incomum e sofisticado de tons. Partindo de uma trama de amores rocambolescos, o diretor Louis Garrel retira a atmosfera patética e embute uma dose generosa de melancolia. Os gestos se tornam inconsequentes: depois do anúncio brutal, Abel apenas sai de casa. Quando reata com Marianne, anos mais tarde, a namorada sugere que ele faça sexo com Ève (Lily-Rose Depp), para agradar a garota apaixonada. Em parceria com Jean-Claude Carrière, um dos maiores roteiristas de todos os tempos, Garrel concebe um mundo desprovido de moral. “A mamãe que matou o papai envenenado”, confessa baixinho o filho de Marianne a Abel. Ele estaria falando a verdade? Seria apenas um delírio de criança? Ora, isso não impede que a vida de todos continue sem sobressaltos. A ciranda de personagens se manipula sem remorso, apenas para perceber que os desejos se transformam sensivelmente com o tempo.
Um Homem Fiel retira do romance a noção de destino e de eternidade, preferindo os contatos efêmeros. Neste sentido, é notável que a narração se divida em três, alternando entre os pontos de vista de Abel, Marianne e Ève. Suas falas, de conotação literária, jamais comentam o conteúdo das imagens, servindo como contraponto emocional. Garrel se apropria do melodrama para despi-lo de sentimentalismo e observar o que resta deste processo – não por acaso, as narrações provêm do futuro, com notável distanciamento em relação às decisões tomadas no passado. Os atores possuem semblantes ou desafetados (Garrel e Casta) ou um tanto maquínicos (Depp), o que provoca um estímulo cômico raríssimo, do tipo que faz rir pelo incômodo e pela inadequação. Estes personagens tão comuns divertem por manifestar sentimentos de modo que ninguém costuma fazer em sociedade. Assim, rimos porque, neste ambiente fabular, as pessoas agem como poderíamos (ou gostaríamos) de agir.
A propósito de fábulas, talvez seja melhor dizer que o filme adota uma aura de conto de inverno, como fazia Rohmer em sua época. Os diálogos são cuidadosamente equilibrados com instantes de silêncio, o ritmo é tão contemplativo quanto ágil ao longo de sucintos 75 minutos. Garrel ora aposta em close-ups clássicos, ora efetua zooms e tilts assumidamente artificiais, sublinhando o aspecto tragicômico das cenas dramáticas. O enquadramento em scope provoca um efeito interessante por se interessar essencialmente aos rostos, de modo intimista e repleto de pudor. A obra assume seu caráter minimalista, embora subverta expectativas morais com uma coragem impressionante. O roteiro coloca homens e mulheres em pé de igualdade, aposta na autonomia do prazer feminino tanto quanto numa virilidade desconstruída, não possessiva, de Abel e do Doutor Pivoine (Vladislav Galard). Quanto ao suspense (Marianne teria realmente assassinado o marido?), o roteiro jamais lhe confere grande importância, algo que também contribui à comédia inesperada. Neste universo de amores voláteis e transformações bruscas, de que importa se a esposa realmente matou seu amado?
Com poucos filmes na carreira enquanto diretor, Garrel tem construído um caminho muito singular na representação de relacionamentos. O excelente Dois Amigos (2015) já trabalhava com um triângulo amoroso tragicômico, embebido de poesia ao retratar adultos equivocados em suas escolhas de vida. Agora, o diretor-ator expande este universo através do domínio magistral de narrativa e estética, obtendo efeitos primorosos pela simples manipulação da linguagem cinematográfica (a narração em off desprovida de qualquer som direto, o uso esporádico de música instrumental para reforçar a brincadeira com o amor clássico). A cena final oferece um exemplo desta economia narrativa, resumindo o destino de quatro personagens, todos com conflitos em aberto, num único plano silencioso. Um Homem Fiel constitui um filme belíssimo, engraçado e inteligente como poucos dramas contemporâneos conseguem ser.
Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês, em junho de 2019.