"O Rio de Janeiro é uma travesti bonita"
por Bruno CarmeloUma floresta escura. A câmera passeia entre as plantas, lentamente, enquanto uma narração em off discursa sobre a vida, a sedução, a posição dos seres humanos no mundo. Esta divagação permanece durante um longo tempo antes de percebermos que a vegetação representa o Rio de Janeiro, e a voz vem de Luana Muniz, travesti da região da Lapa, falecida em 2017. De repente, o ambiente etéreo adquire contornos bastante reais, com implicações sociais muito específicas.
Obscuro Barroco busca articular política e poesia, se possível nas mesmas imagens. A presença de Luana Muniz é particularmente expressiva já que a personagem se mostra como deseja, improvisando gestos e danças para o olhar da câmera. Ela diz o que quer, ela controla a sua representação e seu discurso. Algumas reflexões sobre o cotidiano das travestis e sobre sua inserção no cenário carioca são muito relevantes, embora um sem-número de evocações retóricas canse pela repetição. Quando envereda pelo existencialismo desconexo e vago, a narrativa sai dos trilhos.
Mas os instantes de delírio sem rumo são intercalados com cenas fortes captadas pela diretora Evangelia Kranioti. Ela se dedica a retratar o frenesi dos corpos durante o Carnaval nas ruas e no sambódromo, nas festas e nas manifestações políticas. O filme aborda o corpo como ferramenta política. Os seios da travesti, o pênis da travesti, a testa na qual se escrevem palavras de ordem, as bochechas cobertas de glitter servem como tela em branco para a livre expressão individual. A articulação entre os atos de brincar e militar é muito bem feita pela montagem.
Além disso, Obscuro Barroco navega num mar de sensações que beiram a abstração, quando a câmera se aproxima demais da textura das plumas de fantasias, ou das pessoas pulando em protestos contra Michel Temer. Estamos no imperativo do movimento: o corpo precisa se mover, se transformar. Aqui, o deslocamento não coincide com o prazer do cinema de ação, no qual os conflitos vêm de fora e forçam o indivíduo a agir, e sim o contrário, com uma iniciativa pessoal se expressando no espaço público. É preciso tomar conta das ruas, é preciso gritar, é preciso gozar. Reina a sensação de liberdade no encadeamento entre as cenas.
O projeto se conclui num formato curioso, nem puramente documental, nem experimental no sentido estrito do termo. Com 60 minutos de duração, ele também navega nos limites do longa-metragem e nas convenções da vídeo-arte. Talvez não revele nada propriamente novo – para um brasileiro, as imagens de plumas e glitter representam todos os Carnavais – porém consegue articular de maneira eloquente a reflexão sobre corpos revolucionários. Seu discurso às vezes encanta, às vezes se satura, mas o projeto melhora sempre que decide escutar, ao invés de dizer. A figura crepuscular de Luana Muniz, enfim, ganha uma bela homenagem.
Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.