Te amo, mas te rejeito
por Bruno CarmeloDesde criança, o chinês Yao se divide entre a vida de seus sonhos e a vida imposta pela família. Por um lado, o empresário gay planeja morar com o futuro namorado em Pequim. Por outro lado, a família conservadora impõe que ele se case com uma mulher e tenha filhos antes de morrerem. Yao presencia o pai e a mãe doentes, sentindo-se compelido a atender ao pedido. Mesmo assim, não se esquece da infância opressora ao lado dos pais, que o rejeitaram por ser o segundo filho da família, o que ocasionou uma pesada multa do governo chinês em decorrência da política do filho único.
A Seda e o Fogo se constrói como um bruto filme de afetos. O diretor norte-americano Jordan Schiele adentra a pequena casa num vilarejo rural, coberto de neve, e recebe o tratamento de um alienígena: “Então você tem pelos na pele? Como os seus olhos são grandes!”, gesticula a mãe. Atitudes como essa atestam a dificuldade dos camponeses em lidar com as diferenças, em especial, a homossexualidade do filho. O documentário é rico em interações truncadas, subentendidas ou sugeridas, quando se deixa muito claro todo o afeto e toda a raiva que pai, mãe e filho nutrem um pelo outro. O cineasta capta silenciosamente o cotidiano, registrando momentos preciosos de convivência como o preparo das refeições ou a hora de ir para a cama.
A configuração estética é surpreendente. Schiele trabalha com uma câmera caseira, cujas imagens de baixa qualidade, pixelizadas, pareciam destinadas a um resultado precário. No entanto, o cineasta sabe extrair o melhor do equipamento, no caso, a agilidade da câmera na mão, o branco e preto de contraste aguçado para disfarçar a ausência de texturas, além de construções metafóricas de uma plasticidade impressionante (Yao mergulhado numa escuridão profunda, os fogos do Ano Novo explodindo no horizonte). Esta é uma escolha inteligente diante da produção modesta: assumir a textura do material, usar as limitações a seu favor, buscar formas de imagem alternativas ao realismo típico do documentário. É impressionante o refinamento que Schiele consegue extrair de imagens que parecem gravadas por um telefone celular.
Ao mesmo tempo, o cineasta é esperto o suficiente para se transformar em personagem ao invés de tentar parecer invisível. A chegada do estrangeiro num local nada turístico provoca um frenesi no vilarejo – ainda mais por esperarem a chegada de Yao com uma mulher, a provável noiva, ao invés de um rapaz -, algo que representa muito bem as limitações na vida de seu personagem. As trajetórias distintas do diretor e de seu amigo e protagonista se fundem no retrato sobre a dificuldade de lidar com o outro, seja ele o morador de outro país, ou o indivíduo de sexualidade diferente. As passagens em que os chineses citam o ressentimento com as falas depreciativas de Trump sobre a China aprofundam o abismo entre a ideia de um mundo globalizado e a realidade quase medieval da cidadezinha.
Por fim, A Seda e o Fogo constitui um documentário simples, porém de profunda ambição estética, e capaz de representar a homofobia cruel dentro de uma única família, durante poucos dias. “O que significa resistir? Resistir é uma faca no coração, sangrando aos poucos”, afirma a certa altura o pai, cansado de buscar curas para a surdez da esposa. Este é também o conflito de Yao, entre resistir à pressão dos pais e resistir à vontade de viver sua homossexualidade. O jovem soa condenado à infelicidade pela tentativa paradoxal de satisfazer ambos os lados da equação. O projeto se encerra de modo tão belo quanto triste. A partida dos viajantes ocorre sem a resolução dos conflitos, apenas a certeza de que os tempos passam, novos presidentes assumem, as cidades se transformam, mas algumas formas de pensamento oriundas da tradição e da religião ainda pesam demais sobre os indivíduos.
Filme visto no 26º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2018.