Em apenas seu segundo trabalho nos cinemas, Robert Eggers consegue mostrar uma criatividade e intensidade como poucos fazem – se em seu trabalho anterior, o polêmico e surpreendente A Bruxa, ele impactava pela abordagem temática forte sobre o preconceito contra a emancipação das mulheres, o diretor e roteirista agora tem a seu lado um fundo alegórico mostrado de uma maneira bem mais forte – algo que está presente do primeiro ao último frame deste O Farol.
Assim como Darren Aronofsky fez com o seu também polêmico Mãe, Eggers usa uma metáfora e simbolismo com alguma outra história clássica para nos apresentar sua nova trama – se Aronofsky contava com a bíblia, Eggers conta com a mitologia grega – além de semelhanças com obras literárias do terror de autores como Edgar Allan Poe e H.P. Lovecraft, tudo isso para traçar um paralelo para descrever o sentimento de solidão dos homens – em especial, um reflexo disso sobre a masculinidade tóxica, o desejo de procurar ser o “melhor do bando”, o machismo, a grosseria que os indivíduos tanto exalam – e, se é que existe um ponto deste filme que se assemelhe com A Bruxa – é importante ressaltar que trata-se de uma obra bem diferente deste outro trabalho – talvez o próprio desejo impuro do homem em ver a mulher como mero objeto – e, acredite: o cineasta faz tudo isso contando com apenas dois atores em cena.
O Farol conta a história do jovem Ephraim Winslow (Pattinson), contratado pelo veterano faroleiro Thomas Wake (Dafoe), para ajuda-lo na manutenção de uma pequena ilha próxima ao litoral britânico, no final do século XIX. Estranhando o comportamento grosseiro e arrogante de Thomas, logo Ephraim começa a ficar obcecado em querer saber o que o companheiro tanto esconde no topo do gigantesco farol da ilha – em meio a isso, sendo atormentado pelas aves do local, além de estranhas visões e sonhos misteriosos.
Creio que apenas pela sinopse, é notório captar o clima que Eggers esta disposto a passar – isso ainda é escancarado pela decisão primorosa de filmar o longa em preto e branco e no formato de imagem 1:19:1 (que é quase o mesmo das antigas Tv’s de tubo, mais próximo de um quadrado do que do retângulo da maioria das produções atuais) – é praticamente impossível não encarar O Farol como um pesadelo visual renascentista – que vai se assemelhar com pinturas famosas clássicas e do cinema italiano das décadas de 40 e 50, ou de obras como o clássico O Sétimo Selo de Ingmar Bergman e do expressionismo alemão, como no cinema mudo, com O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, como exemplos.
É preciso mencionar desde já que o trabalho sonoro aqui é valioso: os sons emitidos pelo farol e as aguas batendo nos rochedos da pequena ilha não deixam de soar assustadores, como se o local fosse um ser vivo – ou um monstro mesmo – e, dentro da casa onde os dois personagens aparecem, é louvável o trabalho da direção de arte em fazer o ambiente soar sombrio e sujo, trazendo veracidade na personalidade do Thomas de William Dafoe – algo que, sem o uso de cores, poderia ser mais difícil de demonstrar – mas ao utilizar sombras nos cantos dos corredores, nas frestas entre as madeiras que formam as paredes do local ou o simples assoalho cheio de furos, estabelecem bem a insalubridade do ambiente – que só é mudada quando temos um lapso de visão do que haveria dentro do topo do tal farol – ali, obviamente, a claridade culmina – em uma representação visual que comentarei mais a frente.
Eggers é tão inteligente em sua abordagem, que, para apresentar os dois personagens, ele não necessita de nenhum dialogo – os dez primeiros minutos de filme praticamente não possuem nenhuma fala – tudo para vermos o inicio da relação dos dois, através de suas rotinas diárias no trabalho e alimentação – e, obviamente, não poderíamos deixar de falar do trabalho incrível dos dois atores – Robert Pattinson mais uma vez demonstra todo seu talento, ao mergulhar em um personagem complexo, que de uma aparente timidez e seriedade, vai aos poucos demonstrando suas reais facetas (e segredos), que formam sua real persona – enquanto que William Dafoe se mostra como um ser incrivelmente arrogante, grosseiro e vulgar – capaz de ser exigente com seu subordinado apenas por capricho e crueldade, muitas vezes. Mas o mais bizarro é que de um contato tão errante e infernal, acaba aparecendo doses surpreendentes de amizade – em meio as bebedeiras, cantorias e discussões dos dois – o personagem de Dafoe parece estar por trás de tudo que acontece na ilha, parece saber de tudo – e é isso que vai intrigando cada vez mais o Ephraim de Pattinson – que nunca ganha as respostas que quer – se misturando a uma fuga misteriosa de seu passado, que Thomas não hesita em tentar trazer a tona quando pode – uma verdadeira relação de amor e ódio (mais para o ódio, podemos dizer)
Que nos traz a temática estabelecida por Eggers, que citei no inicio;
A maneira criativa que o diretor faz isso exige algum conhecimento externo por parte do espectador para a compreensão – recomendo pesquisar sobre a mitologia grega, principalmente a história de Prometheus e Zeus (ou Proteu) – enfim, O Farol é sobre solidão e auto conhecimento; mas também uma critica contra o machismo estrutural – e uma boa maneira de refletir isso é colocando dois homens heterossexuais em um ambiente fechado e obriga-los a serem o mais próximo possível de serem amigos.
Sendo assim, o filme pode ser visto sob duas óticas diferentes: uma contando com a visão critica ao machismo e sua busca por superar seu próximo na sociedade ou uma alusão alegórica que se assemelha a busca de fogo (conhecimento) por parte de Prometheus – em ambas as visões a mitologia estará presente.
Enfim, minha humilde visão seria assim: Ephraim é Prometheus, o filho de Zeus que quer buscar o fogo do pai, para dar aos humanos – Thomas pode ser uma mistura do próprio Zeus ou de seu outro filho, Proteu – o personagem de Dafoe faz varias citações a deuses gregos do mar (e, enquanto é agredido por Ephraim, no final, ele é visto como uma criatura do mar, com tentáculos e traqueias), além é claro que ameaça o personagem de Pattinson com algum tipo de maldição da mitologia também – assim como Zeus fazia contra Prometheus, quando seu filho lhe desobedecia em algo. Assim, quando Ephraim/Prometheus finalmente entra no Farol, que representa o topo do conhecimento, e toca no fogo/luz, ele cai – pois não aguentou o que sentiu ali – e, como punição, é condenado a ficar trinta mil anos tendo o fígado devorado por uma águia – a ultima cena do filme é exatamente isso, substituindo a águia pelas gaivotas que habitam a ilha.
A metáfora é simples, mas o que a deixa complexa é justamente os detalhes que Eggers coloca dentro dela. A solidão dos dois, a falta de relacionamento com mulheres – isso é inserido dentro do mito de Prometheus – o que nos traz a sereia, vivida pela Valeriia Karaman – desde que chega ao local, Ephraim é atordoado com as visões de sereias e de uma figura de gesso em seu quarto, com o formato das mitológicas criaturas meio mulheres, meio peixes. Isso é uma evidente metáfora de como a figura das mulheres é vista pelos homens como “ameaça” ou como “objeto” – as sereias tem a fama de levar os homens para o mar e mata-los – representando o pensamento do homem de achar que as mulheres querem se aproveitar deles – além de mostrar uma a sereia com uma enorme e estranha vagina, representando, talvez, o medo de ser zombado pelas mulheres durante o sexo – e, como objeto, fica claro isso nas duas cenas onde Ephraim se masturba vendo a pequena figura de gesso – na segunda vez que isso acontece, fica evidente a intenção de fazer o farol ser a representação de um pênis – Eggers o filma inclinado, para depois rodar a câmera, dando a impressão de um movimento de ereção – sob esta ótica, tem-se a entender a super valorização que o homem dá ao seu órgão genital, tendo-o como uma “ferramenta” capaz de fazê-lo ser desejado ou importante – nesse aspecto, a curiosidade de Ephraim é a representação da busca de status do homem, de ser “famoso entre as mulheres”, digamos assim – tal pretensão faz o homem até esquecer de quem ele realmente é ou do que faz – e Thomas está disposto a não dividir isso, como todo “bom machista”, que prefere usufruir mais de prazeres com as mulheres do que os outros homens.
Ou seja, Ephraim não é Ephraim, mas sim um assassino que está fugindo da policia e do passado, sem pouco se importar com a vida do homem que matou – mesmo sempre se lembrando disso – ele está mais preocupado em se sentir bem do que em se redimir – demonstrando o egoísmo do homem diante do mundo – algo que tem até a haver com a forma com que trata a natureza – o personagem de Pattinson detesta as aves do local, chegando a matar brutalmente uma – isso tudo nos leva a ter a luz do farol como uma busca de prazer, que pode ser comprovado na hora que vemos Thomas nu no topo do farol, ou quando realmente parece estar fazendo sexo com uma criatura parecida com um polvo – já quando Ephraim chega até o topo e toca na lâmpada do farol, ele, inicialmente, fica encantado, mas logo exclama de dor e cai – ainda sobre a história mitológia, a luz representa o conhecimento, o saber para os seres humanos – quando o homem não sabe o que quer ou pensa que sabe, geralmente quando o conhecimento verdadeiro é revelado, ele não o suporta, não o entende, exatamente por isso, ele se desespera – e não a toa, a queda da escada não deixa de ter um aspecto de decida ao inferno, culminando com a já citada última cena, onde ele é castigado eternamente por não ter compreendido e aproveitado o verdadeiro significado do conhecimento que adquiriu – sendo castigado pela própria natureza, que tanto maltrata - ora, a masculinidade não é a coisa mais importante do mundo.
O Farol é, também, um painel do que a inconsequência da masculinidade toxica traz ao mundo – a cena em que, após as bebedeiras (outro vicio do homem) e danças, os dois personagens quase se beijam, mas quase se batem antes disso, mostrando o orgulho do homem machista em manter sua masculinidade “intacta” – mesmo que sozinhos ali, sem ninguém ou a sociedade os vendo ou julgando, o pensamento fechado e destrutivo não dá espaço para evitar a homofobia – o homem preconceituoso é tão orgulhoso que não pode aceitar a homossexualidade, de nenhuma forma. Ainda é visível tais sentimentos de repulsa a mulher quando Thomas fala de sua ex esposa – ele prefere estar no mar sozinho do que estar próximo de sua mulher – representando, possivelmente, como alguns homens só sabem ver as companheiras como um mero apoio ou, lamentavelmente, como incômodos.
Todos esses simbolismos, criatividade e criticas, tornam o Farol um dos grandes filmes de 2019 – um trabalho para agradar quem está atrás de um filme que faz pensar – e, acredite, mesmo que você não pegue todas as referências do filme de uma só vez, as imagens perturbadoras e seus mistérios ficarão em sua cabeça – algo que somente as grandes obras-primas do terror conseguem fazer.