O inferno é uma ilha deserta
por Bruno CarmeloUma tela quadrada (ou próxima disso, em formato 1.19:1). Uma fotografia em preto e branco, extremamente contrastada, com textura antiga, suja. Personagens que caminham em silêncio e, em determinado momento, param e encaram diretamente para o espectador. O início de The Lighthouse evoca o cinema soviético do início dos anos XX e os recursos de linguagem do cinema mudo. O diretor Robert Eggers continua buscando nos símbolos do passado o material para ilustrar os medos contemporâneos. Após A Bruxa, constrói uma fábula sobre isolamento e loucura, sobre a monstruosidade real ou imaginária – sua versão pessoal de “A Volta do Parafuso”.
Logo, os dois homens falam, até demais. Thomas Wake (Willem Dafoe) corresponde ao imaginário do capitão bêbado e agressivo, exceto pelo fato de que se tranca dentro do farol, à noite, completamente nu, e emite alguns gemidos de prazer. Ephraim Winslow (Robert Pattinson) é anunciado como o típico novato explorado pelo chefe, ainda que esconda alguns segredos no passado e ostente um comportamento, digamos, instável. A narrativa está repleta de sugestões de violência e erotismo – nunca sabemos ao certo se os dois homens vão se matar ou fazer sexo um com o outro. Tudo passa pelo corpo, como atesta a quantidade impressionante de brigas, bebedeiras, trabalhos forçados, urina, fezes, sangue, vômito, esperma e flatulência.
A decisão de confinar a trama a dois únicos personagens poderia resultar num produto teatral e excessivamente dependente dos diálogos para se desenvolver. Felizmente, a armadilha é evitada por dois recursos: a potência estética e a subversão do realismo do texto. Eggers se mostra mais uma vez um exímio construtor de imagens, atribuindo uma função narrativa importante à natureza, que poderia ser considerada uma terceira personagem. As ondas do mar, a chuva, o vento e mesmo as gaivotas se convertem em elementos assustadores, de grande impacto visual e sonoro. Mesmo sem saber ao certo o que está acontecendo aos personagens – estariam enlouquecendo? -, compreendemos o clima de perigo iminente naquela ilha deserta. Quanto aos diálogos, cada ator recebe monólogos tão deliciosos quanto perigosos, marcados por oscilações de tom e vocabulário antiquado, condensados em tiradas longuíssimas que exigem o máximo talento de Dafoe e Pattinson.
The Lighthouse se converte no huis clos a céu aberto, ou seja, um filme de clausura sobre dois homens oprimidos, impossibilitados de pegar um barco e partir da ilha. A convivência forçada entre os amigos/inimigos atinge índices cada vez maiores de intensidade, felizmente contrabalanceada por uma generosa dose de humor. O cineasta percebe que a comicidade é um elemento necessário permitir algum tipo de vazão à angústia crescente. Eggers prefere, portanto, assumir o absurdo da trama, brincando muitíssimo bem entre o que deve ser mostrado e o que pode ser sugerido ao espectador. O filme constitui um exemplo notável de manipulação consciente e dosada de luz, som, efeitos visuais e psicologia de personagens.
O resultado não se contenta com a beleza estonteante das imagens nem com o refinamento da produção. Quando chega a hora de partir para o terror, Eggers oferece cenas chocantes, de uma brutalidade explícita e banalizada – mais uma vez, os animais desempenham um papel importante, como em A Bruxa. O diretor aproxima-se de Lars von Trier na estética da violência, apostando na possibilidade de ao ser mesmo tempo mais gore e mais refinado. Uma sequência de sexualidade envolvendo a figura de uma sereia revela-se particularmente perturbadora, assim como o desfecho, de uma plasticidade magistral.
Enquanto no projeto anterior Eggers testava os limites da sugestão, aqui ele se diverte tanto com o imaginário sugerido quanto com a passagem ao ato. O efeito pode ser considerado pretensioso por sua grandiloquência imagética e existencialista, no entanto o filme sempre sabe quando dosar a intensidade das cenas, interrompendo uma fala complexa para incluir uma piada física. Pela presença de Robert Pattinson e Willem Dafoe, The Lighthouse deve chegar a um circuito de cinemas ainda mais amplo. Será delicioso descobrir, então, a surpresa do público médio diante de uma obra tão visceral.
Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.