Sociedade depressiva
por Bruno CarmeloEste drama chinês poderia ser descrito como um filme cinza. As cores são predominantemente frias e desbotadas, o único dia em que se passa a trama é nublado e frio, as pessoas perambulam por prédios descascados, sujos, enquanto passam por planaltos industriais abandonados e vielas empoeiradas. Os personagens centrais são figuras solitárias, atravessando um instante de ruptura – seja o momento em que vaza um vídeo íntimo na Internet, quando uma briga na escola leva um jovem ao hospital, ou quando um colega comete suicídio. Perseguidas, as pessoas precisam fugir, sem saber como, nem para onde.
O filme corre o risco de soar reincidente em sua mensagem pessimista sobre a perda de valores da sociedade. Frases como “A vida é inoportuna”, “Minha vida é um contêiner de lixo”, “Eu não gosto de ninguém, ninguém presta” e “O mundo é asqueroso” estão espalhados pelos diálogos ao longo das 3h50 de projeção, especialmente na primeira hora. É notável, entretanto, o modo como o diretor Hu Bo impede que esta constatação se torne uma denúncia retórica. O discurso jamais aponta culpados, tampouco busca soluções. Sua abordagem é essencialmente descritiva, psicológica, privilegiando o tom melancólico.
Um Elefante Sentado Quieto apresenta adolescentes sem desejo sexual, sem vontade de experimentar álcool nem drogas, sem laços sociais; constrói um dos gângsteres mais tristes da história do cinema e privilegia espaços destituídos de vida, como o Parque dos Macacos, onde não há macacos, nem visitantes, nem mesmo atrações funcionando – apenas Wei Bu (Yuchang Peng), que gosta de passar as tardes sozinho por lá. Aliás, a metáfora do título é interessantíssima: a única possibilidade de diversão que se abre aos personagens é a hipotética visita ao zoológico de uma cidade vizinha, onde existiria um elefante sentado o dia inteiro, sem se mexer. Esta atração nada espetacular, símbolo da imobilidade e da inércia, diz muito sobre a galeria de jovens e idosos que fracassam na tentativa de sair da cidade, como se estivessem numa prisão a céu aberto.
As narrativas paralelas soam um tanto dispersas no início, mas o roteiro trata de fornecer todas as informações necessárias à compreensão de cada conflito, além de permitir o cruzamento das tramas. O filme faz bom uso de suas quase quatro horas de duração, sem tempos mortos. A estética adotada por Hu Bo colabora muito neste processo: o diretor usa uma câmera ágil, acompanhando as andanças dos protagonistas pelos cômodos, escadas e corredores em longos planos ininterruptos. O diretor possui um talento impressionante para a composição de imagens, deixando os rostos expressivos dos atores no primeiro plano, enquanto ações importantes ocorrem no fundo do quadro, desfocadas. A fotografia explora o potencial expressivo da profundidade de campo limitada – em determinados momentos, é importante que o fundo desfocado impeça a distinção dos personagens.
O virtuosismo é tamanho que o cineasta chega a compor quatro profundidades diferentes numa mesma imagem, cada uma sugerindo seu próprio conflito. No aguardado encontro entre Wei Bu e Yu Cheng (Yu Zhang), o adolescente se encontra em primeiro plano; seu algoz o persegue logo atrás, levemente desfocado; os capangas deste se situam num terceiro nível, e outro adolescente aparece ao fundo. As quatro camadas interagem magnificamente num plano aparentemente simples, com câmera móvel e formato tradicional 1.85:1. Um Elefante Sentado Quieto impressiona pela capacidade de aliar o naturalismo das ações e diálogos – os atores estão impecáveis, aliás – a uma elaboração estética inteligentíssima, sem se sobrepor ao aspecto humano da narrativa.
O principal obstáculo à divulgação deste projeto deve ser a sua longa duração, que afugenta boa parte do público, além de possibilitar poucas sessões diárias aos exibidores. É curioso, no entanto, refletir sobre a impressão relativa de tempo excessivo: a juventude hiperconectada se acostumou a fazer maratonas de séries que duram muito mais tempo do que um filme longo, além de emendar franquias cinematográficas sem perceber o acúmulo das horas. No entanto, quatro horas seguidas se tornam um entrave para a apreciação de um único filme – ou a leitura de um livro, ou o desfrute de uma peça de teatro. Ora, quem estiver aberto a uma experiência diferente do entretenimento fast food encontrará uma obra de ritmo agradável, deslumbrante imageticamente e profunda na construção de personagens.
É possível que o filme seja lembrado como um testamento da trajetória de Hu Bo, que cometeu suicídio logo após a conclusão deste trabalho. Um Elefante Sentado Quieto se torna, portanto, o primeiro e último longa-metragem do talentoso cineasta. Este fator atribui à obra certa aura de filme “maldito” ou “exótico”, casos em que circunstâncias de produção se sobrepõem ao resultado na apreciação do público e dos críticos. A leitura sintomática torna-se inevitável diante de um projeto triste, sombrio, contendo uma série de mortes por abandono, assassinato e mesmo suicídio. Pode-se ler a obra como sintoma da psicologia de seu criador, ainda que a associação seja superficial e imediata demais - este tipo de leitura diz muito mais sobre a nossa vontade de acessar o inacessível (compreender as causas exatas de um suicídio) do que sobre a vítima em questão. Por trás do destino trágico de seu criador, existe um filme ousado, raro dentro do circuito comercial, e que merece ser descoberto pelos cinéfilos.