A violência dos ignorantes
por Bruno CarmeloMarcos (Walter Rodríguez) não vive abertamente a sua homossexualidade. O desejo por garotos é bastante claro para a melhor amiga Laura, assim como para os outros jovens do vilarejo, que o insultam e agridem com frequência. A sexualidade também é percebida pelos pais, que notam a paixão do menino por vestidos e pelas maquiagens, mas preferem fechar os olhos à questão. Mesmo assim, Marcos é impedido de assumir a sua sexualidade por uma série de fatores: o medo da aceitação dos outros, a precariedade financeira em que vive, a dependência dos pais devido à idade.
Marilyn traça o retrato de uma homofobia constante, porém silenciosa, tacitamente aceita pela sociedade como punição pelo “desvio de conduta” do garoto. Os gritos de “viado” são considerados naturais, os empurrões são percebidos como brincadeiras inconsequentes, a agressão sexual é vivenciada em silêncio, sem ter a quem recorrer. O garoto se cala, mas jamais aceita a situação. Por isso, se veste de mulher no Carnaval - evento que permitiria o travestimento inconsequente -, arruma um namorado na cidade vizinha e trata de levá-lo para casa. Marcos é agredido pela sociedade, mas faz questão de impor seu ponto de vista neste ambiente retrógrado e machista. A narrativa encaminha-se para uma explosão: depois de tantas insinuações e ameaças, a corda precisa romper em alguma das pontas.
A condução da narrativa por Martín Rodríguez Redondo é exemplar. O cineasta trabalha muito bem a tensão através dos silêncios e trocas de olhar. As relações de poder devido a classes sociais, gênero e sexualidade se misturam de modo orgânico dentro da casa modesta da família de caseiros, onde os filhos adolescentes dormem no mesmo cômodo dos pais. O trabalho de direção de arte é rico, porém discreto, assim como a direção de fotografia e a montagem de precisão cirúrgica. O projeto caminha muito bem entre o drama e o suspense, apostando numa longa construção psicológica de cada personagem. De certo modo, Marilyn é uma história de violências, cuja materialização rumo ao final serve de desenlace a uma violência sofrida pelo garoto o filme inteiro.
O diretor consegue fugir às principais armadilhas do gênero. Os pais do protagonista não são figuras tirânicas, muito pelo contrário: eles respeitam a sensibilidade do garoto e valorizam sua ajuda diária com corte e costura. Os meninos agressores tampouco são inerentemente maus, visto que o roteiro trabalha habilmente o desejo homossexual reprimido por parte dos algozes de Marcos. As cenas de bullying são desprovidas do fetiche da violência, já que a câmera se mantém sempre junto dos olhos do garoto, vendo o mundo por seu ponto de vista, ao invés de enxergá-lo pelo olhar externo. Mesmo o melodrama é evitado pela abordagem bruta em emoções, mas delicada na construção da imagem. Redondo prefere trabalhar com gritos presos na garganta a manifestações de catarse.
A detonação do encontro entre o mundo patriarcal e a homoafetividade de Marcos ocorre de maneira incrivelmente crua, e ainda mais chocante pela falta de preparação ou de consequências. A montagem interrompe o filme imediatamente após o baque, de modo a prolongar o horror no espectador. O cineasta age de modo análogo à abordagem de Michael Haneke, acostumado a tratar a violência como algo ao mesmo tempo abjeto e inevitável, através de planos fixos, sem música ou qualquer forma de ornamento, na intenção de aumentar o impacto no público. A observação, para Haneke e Redondo, não passa por julgamentos morais.
Neste instante, pela primeira vez, não estamos mais do lado de Marcos, observando o crime por um ponto de vista distanciado. Marilyn não legitima nem defende a violência, retratando-a como saída encontrada por uma pessoa incapaz de lidar com seus problemas de outro modo. Em outras palavras, a agressão torna-se consequência da ignorância - de si e do mundo -, da incapacidade de falar sobre o que não pode ser dito. A pulsão de morte não é analisada pela evidente ilegalidade do ato, e sim pelas motivações que levam à passagem da intenção ao ato.
Filme visto no 26º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2018.