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    Limonada
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Limonada

    O avesso do sonho americano

    por Bruno Carmelo

    Este drama começa onde a maioria dos filmes convencionais terminaria. A romena Mara (Malina Manovici) obtém permissão para ficar nos Estados Unidos, casada com um americano gentil, que acolhe em sua casa o filho dela de um casamento antigo. O serviço de imigração dá prosseguimento à papelada, há possibilidades de trabalho fixo no horizonte. The end. No entanto, a partir do ponto em que a vida está segura, a diretora Ioana Uricaru faz a vida de Mara desmoronar. Como num castelo de cartas, um incidente leva a outro, e em seguida a mais um, em circunstâncias que fogem ao controle da protagonista.

    Para não estragar o andamento da trama, basta dizer que o inferno da personagem envolve fortes cenas de xenofobia, abuso sexual, agressão doméstica, intimidação, acusações falsas. Os policiais, agentes de imigração e o marido agem como se estivessem fazendo um grande favor à estrangeira, podendo cobrá-lo quando desejarem. As relações de poder envolvem graus diversos de machismo e a sensação de superioridade dos Estados Unidos em relação ao resto do mundo. “As pessoas enlouqueceram depois do 11 de setembro”, explica um dos agressores, justificando assim a violência infligida a Mara em nome da segurança dos americanos, aqueles que realmente teriam direito de desfrutar deste “país grandioso”.

    Uricaru torna Limonada asfixiante por suas escolhas eficazes de direção. Mara está presente em absolutamente todas as cenas, e jamais abandonamos o ponto de vista dela. No entanto, os enquadramentos sabem sugerir a violência ao invés de mostrá-la, deixando os aspectos mais explícitos no espaço fora de quadro, enquanto se foca nas expressões da protagonista.  A direção de fotografia encontra um meio termo interessante entre os planos fixos e a câmera discretamente móvel, atenta a detalhes, com tratamento elegante de luz e montagem. Este é o tipo de projeto em que o refinamento das imagens busca afastar a ideia de miserabilismo, ainda que não chame atenção excessiva a si mesmo, ou seja, não se transforma em exercício de vaidade da diretora.

    Enquanto isso, pequenos indícios permitem atenuar o quadro de barbáries, sugerindo que nem tudo são pedras no caminho da enfermeira: a escola recebe bem o filho dela, existe uma amiga gentil com quem contar. A cineasta evita transformar Mara numa mártir, de mesmo modo que os agressores são mais do que meros vilões – trata-se de homens que normalizaram as relações de violência e agem deste modo por acreditarem ter o direito, ou melhor, dever patriótico, de fazê-lo. A impressão de banalidade nesta trajetória (Mara parece ser uma entre milhares de mulheres estrangeiras na mesma situação) funciona como discurso político ainda mais potente do que seria o relato de um caso excepcional e exemplar.

    Talvez Malina Manovici pudesse trazer maior variação à trajetória da protagonista que, apesar de alguns gestos corajosos, mantém os olhos piedosos e a voz excessivamente doce, frágil. O filho Dragos também mereceria aprofundamento: o garoto se limita a orbitar em torno da mãe, sendo enviado ao quarto ou à casa de amigos quando Mara precisa resolver trâmites pessoais ou burocráticos. Apesar destas questões, a diretora consegue embutir um louvável humanismo na história de brutalidade, atacando a ilusão de uma nação perfeita ao invés do caráter de seus indivíduos em particular. Em outras palavras, critica-se um sistema corrupto, e não necessariamente as peças que o compõe.

    A conclusão se revela bastante amarga. Mara e o filho entram numa casa branca e ampla, e o filho pergunta: “Posso explorar?”, ao que a mãe consente. Entretanto, esta não é a nova casa de Mara, e sim o local onde vai fazer faxina, como espécie de arranjo necessário para pagar a primeira de suas dívidas e tentar a sua sobrevivência naquele país. O projeto se interrompe num momento de incerteza. Não conhecemos a vida da enfermeira em seu país de origem, mas o fato de considerar o tratamento americano melhor do que aquele recebido em suas terras aponta para cicatrizes mais profundas em seu caminho. Talvez este seja, para alguns espectadores, um happy ending, ainda que seja difícil determinar se Mara está feliz. Na imagem final, pela primeira vez, o rosto dela não aparece na imagem.

    Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.

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