Quem nunca passou por alguma situação na qual se viu totalmente a mercê do pensamento de outras pessoas sobre si mesmo? Creio que a maioria das pessoas – e invejo os que conseguem evitar o máximo possível está condição – as projeções que fazemos sobre o que esperamos que irão pensar sobre nós acabam sendo um tipo de abismo, onde damos ao próximo a posição de poder julgar e avaliar nossas condutas, atitudes, opiniões e todo o resto das coisas que constituímos como nossa vida – o que vai direto ao nosso ser – nossas qualidades, habilidades, carreira, relacionamentos, traumas, medos, caráter – tudo que nos leva a angustia que pode ser o viver. Está é a principal discussão que esta adaptação do livro de Ian Reid nos traz, através de seus personagens multifacetados e complexos – um verdadeiro estudo da submissão de muitos seres humanos as taxações e opiniões alheias dos demais e como isso influências (negativamente) na vida dos indivíduos.
Adaptado pelo roteirista que nos presenteou com grandes obras como Quero Ser John Malkovich e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças – além de já ter mostrado ser um grande diretor em obras como Anomalisa e Sinédoque, Nova York – Charlie Kaufman conta de forma criativa e inusitada os tormentos mentais e psicológicos de seus personagens principais aqui – contando a história de um casal, Jake (Jesse Plemons) e sua namorada (Jessie Buckley), que estão a caminho da casa dos pais (Toni Collette e David Thewlis) do primeiro, para apresentar pela primeira vez sua companheira, que, durante o trajeto por uma longa estrada, sob uma pesada nevasca, pensa em terminar o namoro, por não estar se sentindo totalmente à vontade na relação – chegando ao destino, o contato com os pais de Jake faz com que a garota note que há algo muito estranho por trás do rapaz que ela conheceu à poucas semanas atrás – e, consequentemente, algo errado com ela mesma.
Creio que isso seja o suficiente para comentar sobre a sinopse sem dar spoilers – porque Estou Pensando em Acabar com Tudo é aquele tipo de longa que faz você desconfiar de tudo o que aparece – que tem a capacidade de embaralhar os pensamentos sobre passado, presente e futuro como se fossem uma única coisa – e, assim como acontece com nossa mente no dia a dia, quando precisamos lidar com as relações humanas e supostos propósitos de vida, isso nos leva à uma confusão – que Kaufman estabelece de uma maneira muito intensa – e sem se importar em demorar para desenvolve-las – e, infelizmente, talvez esse seja um dos poucos deslizes do projeto – alguns diálogos que soam, às vezes, expositivos demais; entretanto, isso é compensado pela forma verdadeira e até sincera que cada situação é mostrada.
Aliado a um design de produção criativo, que faz questão de mostrar qualquer cenário ou locação como um tipo de sonho ou pintura – creio que não é simplista dizer isso neste caso – tendo em vista que a direção de fotografia acompanha este mesmo pensamento – e, de fato, se torna algo fundamental para separarmos situações reais de outras que não aparentam ser tão verídicas, digamos assim – como a estrada que não parece ter fim; os objetos da casa dos pais de Jake, que remetem inúmeras épocas da vida do rapaz; ou o contraponto de lugares aparentemente mais “fantasiosos” (como o porão da casa, que revela a ligação de um outro personagem com Jake) com o realismo e tristeza dos corredores da escola onde vemos um misterioso e solitário zelador (Guy Boyd) – são características visuais que valorizam e facilitam a experiência – soando apenas enfadonho na viagem de volta do casal – que, devido a repetição de várias opiniões deles – especialmente quando a personagem de Jessie Buckley comenta sobre a personagem de Gena Rowlands no clássico Uma Mulher Sob Influência de John Cassavetes – em evidente paralelo sobre a visão de Jake sobre as mulheres em sua vida – esse momento torna-se cansativo por quase pausar a narrativa – embora soe até natural – afinal, quantas vezes na vida não comparamos feitos pessoais aos de personagens de filmes que gostamos? Aliás, o próprio Jake toma o musical teatral Oklahoma! como um tipo de base e influência para sua vida – enfim, o filme acerta em mostrar como a arte também traça metas não necessariamente reais ou importantes para o ser humano – como dito em certo ponto, “até mesmo nossa realidade é inventada” – há, inclusive, uma brincadeira com filmes que dão esse tipo de “moralidade açucarada” em seus finais felizes, chegando a citar o nome do diretor Robert Zemeckis (de Forrest Gump) – enfim, não seriam as letras de músicas, filmes ou poemas meros escapismos para conseguirmos uma forçada motivação para trabalharmos, nos realizarmos profissionalmente ou amorosamente? Algo que lembra até mesmo o desprezo pela alienação imposta pela sociedade que Tyler Durden demonstrava em Clube da Luta.
Essas e outras ideias são expostas com brilho por Kaufman – que não se preocupa em trabalhar lentamente, para ir revelando traços dos personagens que, aos poucos, vão revelando seus destinos e reais funções narrativas – um espectador mais atento, irá notar lá pela metade do filme do que se trata algumas confusões e mistérios – inclusive, a decisão de estabelecer uma tensão crescente, como um suspense, é algo acertado – que combina com o fato da tensão ser algo presente em nosso dia a dia, principalmente com coisas que não entendemos ou temos receio e medo durante toda a vida.
Estou Pensando em Acabar com Tudo ainda se beneficia de boas atuações – a angustia da namorada de Jake é bem transposta para tela pela eficiente Jessie Buckley – enquanto que Jesse Plemons faz de Jake uma pessoa calma e compreensiva, mas que tem seus momentos de explosão e inseguranças – enquanto que seu pai, vivido com muita ironia pelo ótimo David Thewlis, expressa bem um homem que parece cansado de hábitos repetitivos em seu casamento – ou até mesmo, em um dos melhores momentos do filme, quando debate com a namorada de Jake sobre a subjetividade de sentimentos que a arte pode nos transmitir – “como uma imagem de paisagem, sem pessoas com olhares tristes, pode me deixar triste?” – mas o destaque vem para Toni Collette, que, assim como Thewlis, tem uma breve presença, mas que influência bastante a obra – demonstrando uma assustadora face de uma suposta esquizofrenia, a atriz expressa de forma marcante como a criação de um filho pode ser complexa – que a dosagem de cuidado excessivo com os ensinamentos de vida podem ser difíceis de equilibrar – algo que resulta no que eu tinha mencionado no início – as projeções que fazemos de nós mesmo, mas baseadas nos olhares e opiniões dos demais a nossa volta.
A estratégia de iniciar a narrativa sobre o ponto de vista da namorada de Jake é inteligente – e, logo de cara, é o que Kaufman quer expressar de toda a obra – Estou Pensando em Acabar com Tudo não é sobre ela – é, evidentemente, sobre Jake. Sua namorada não existe – isso fica óbvio quando se confunde com a foto de Jake criança, se parecendo com ela mesma – fazendo dela apenas uma série de pensamentos que ele faz sobre o que muitas mulheres vão pensar sobre ele – eis o motivo dela não ter nenhum nome fixo – ela é chamada de Lucy, Lauren ou Ames – evidenciando o nome de mulheres com as quais teve algum contato, provavelmente – ou nenhum – afinal, o longa é também sobre frustrações – é um tipo de situação que qualquer um pode passar – ter vontade de conhecer uma pessoa em um bar, mas não conseguir conversar ou se aproximar e, depois, lamentar e ficar imaginando que poderia ter acontecido algo.
Sendo assim, toda a viagem de Jake até a casa dos pais, é como se fosse uma viagem em sua mente – ao passado, confrontando sua infância, adolescência e sua entrada na vida adulta – o que explica a personagem de Jessie Buckley visualizar os pais dele em diferentes fases da vida – Jake é um retrato de alguém que deixou sua vida ser moldada pelos gostos e preferencias dos pais – em especial de sua mãe – que o desmerece por não ter nenhum “talento especial” – que o diminui por um prêmio de escoteiro e, ainda assim, o acha uma pessoa dominadora – uma representação complexa de como a relação com os pais molda caráter e detalhes do pensamento de um filho – Kaufman trabalha com todas essas hipóteses de forma bastante aberta, deixando as conclusões para o espectador – é interessante também quando a mãe de Jake confunde a palavra “gênio” com “gênero” – talvez uma possível critica ao modo como alguns pais permitem ou não certos comportamentos dos filhos – seja por atitudes erradas na infância ou, em um grau diferente, sobre como lidar com a orientação sexual da criança ou do adolescente, quando ainda está se descobrindo – o que nos leva a viagem de volta.
A pressa de sua “namorada imaginaria” para ir embora e a forma como ela insiste em pensar que precisa terminar o relacionamento, é a projeção de Jake sobre como as mulheres o veem – sua insegurança para lidar com o amor – afinal, nesta sua imaginação (ou idealização) de uma companheira, Jake a “constrói” como alguém interessante para ele – mas sem a menor ideia do que fazer ou dizer para agrada-la – um reflexo da baixa auto estima de algumas pessoas e de como isso atrapalha a imposição de vontades ou até mesmo a compreensão para lidar com as relações humanas.
Além, evidentemente, dos traumas – a cena onde param na sorveteria é basicamente sobre isso – duas atendentes rindo de um acanhado Jake – um tipo de vislumbre sobre o que o bullyng pode influenciar na vida de alguém e da onde vem seu “medo” pelas mulheres ou relacionamentos – ou, com a outra atendente, que mostra sinais de abuso – mas não consegue expressar isso diretamente – aliás, isso nos traz até mesmo para as ligações que a namorada recebe enquanto está na casa dos pais de Jake – não sei como isso é expressado no livro (que não li), mas me parece que a ideia de mostrar que ela mesma estava ligando para ela e um jeito de demonstrar que o próprio Jake é tão inseguro e tímido que ele mesmo faz sua própria projeção ruim – que ele mesmo não se valoriza ou se respeita – a falta de amor próprio, no caso.
E isso vai nos levar para descobrirmos a verdadeira identidade de Jake – e, não haveria outro lugar para a viagem de carro terminar – a grande escola da cidade onde ele vive – e, nunca conseguiu deixar – um homem que sonhava em ser um grande físico acaba por ser um zelador e auxiliar de limpeza de uma enorme e fria escola – onde vê jovens felizes e sonhadores de um futuro que poderia ser melhor que o dele – felizmente, isso não soa como diminuição do trabalho de zelador, mas transparece apenas a insatisfação do personagem principal – nessa parte, Kaufman utiliza inúmeros recursos subjetivos para mostrar toda frustração do Jake idoso de Guy Boyd – e, também, é aqui onde a questão de compararmos o que a arte nos “ilude” a pensar sobre o que deveríamos fazer na vida – quando a namorada de Jake o encontra em um corredor da escola e eles são substituídos por outros dois atores – e notem como são dois atores com padrões de beleza diferentes dos atores principais – como se fosse a visão que temos baseada nos filmes – onde pessoas bonitas se conhecem se apaixonam facilmente e são “felizes para sempre” – o casal dançando como um musical estrelado por Gene Kelly ou Fred Astaire representa isso perfeitamente – assim como a intervenção de um outro ator como o zelador, que, obviamente, mostra como o próprio Jake sabota sua própria vida – ao deixar seus traumas e inseguranças o dominarem – quando ele se desespera dentro de sua caminhonete fica claro como é afetado pela criação dos pais e dos traumas de infância – ele andar despido atrás da animação do porco cheio de vermes (mencionado no começo) é outra maneira de exemplificar como as pessoas vivem seguindo, sem notar, antigos acontecimentos passados – algo que a psicologia confirma, com as memorias que ficam em nosso subconsciente e, consequentemente, podem moldar nossas condutas morais e psicológicas.
E, enfim, a cena onde o Jake de Plemons aparece envelhecido (com uma maquiagem propositalmente falsa, para exemplificar como aquilo é um acontecimento pouco provável e de pouca relevância), recebendo o prêmio de escoteiro que ele mesmo e sua mãe consideravam irrelevantes – uma cena que soa extremamente triste, por ser um tipo de auto consolação do personagem, por ter aceitado seu destino, que ele queria que fosse diferente, mas, por tudo que acumulou em sua criação e vivências, não conseguiu – desta forma, o último plano deixa claro como o destino de Jake é infeliz e solitário, ou até mesmo mal compreendido – ao enquadrar sua caminhonete encoberta totalmente pelo gelo, com o seu (indesejado) local de trabalho ao fundo – uma representação melancólica e simples com a qual Kaufman fecha o longa, deixando o espectador com a sensação de infelicidade e decepção que Jake termina (ou terminará) sua vida.
Estou Pensando em Acabar com Tudo é um trabalho que surpreende pelo fato de ter sido aprovado pela Netflix também, que não costuma investir tanto em obras com tanta subjetividade de exploração de temas – Charlie Kaufman se mostra um cineasta tão criativo quanto o roteirista que é – mesmo conferindo alguns momentos mais arrastados e expositivos do que deveria, ele traz um cruzamento de sentimentos e sensações que deixará qualquer espectador incomodado – seja pela compreensão ou não compreensão de todas as suas mensagens e citações – ou pelo próprio desespero de seus personagens diante de suas frustrações, não conseguindo escapar do julgamento que toda a sociedade lhes impõe – nisso incluo todas as pessoas a nossa volta, familiares, parentes, amigos, o consumismo que nos é imposto, a arte, etc – algo que pensamos sempre em terminar ou escapar um dia, mas o próprio sistema não nos permite – isso, sem sombra de dúvidas, é algo tenso e assustador para todas as pessoas – pelo menos as que tem alguma consciência disso – o que torna este longa um drama reflexivo e diferenciado.