O retorno de Nanook, o esquimó
por Bruno CarmeloEm 1922, o cineasta Robert J. Flaherty dirigiu um dos primeiros documentários etnográficos da história do cinema: Nanook, o Esquimó. Diante das câmeras, o personagem reproduzia as suas atividades diárias de caça e pesca, para que o filme pudesse transmitir aos espectadores das cidades o funcionamento de uma cultura distante. Quase cem anos depois, Ága retoma a trajetória de um esquimó, também batizado Nanook (Mikhail Aprosimov), vivendo com a esposa Sedna (Feodosia Ivanova) numa planície congelada.
A escolha do diretor Milko Lazarov não é anódina: ao batizar seu protagonista com a figura clássica do cinema documentário mudo, ele presta homenagem e efetua a releitura de uma cultura em transformação. O diretor também filma seus personagens, fictícios desta vez, desempenhando atividades corriqueiras, como a extração de cubos de gelo e a manufatura de gorros e luvas a partir de pele de coelhos encontrados pela região. A cultura autóctone, de certo modo, mantém seus traços principais. Quem mudou foi o cinema.
Mesmo partindo de uma linguagem próxima do documental, Ága jamais nega o desejo de um controle estético exclusivo à ficção. As caminhadas de Nanook pelo gelo são filmadas de longe, e depois com a câmera dentro do trenó, ou mergulhada nos buracos cavados por ele no gelo. Como um olhar onisciente, a imagem se encontra em todos os lugares, na melhor maneira possível de captar atos supostamente espontâneos – a aparição da rena, a chegada do visitante – e mesmo em segredos que os personagens guardam uns dos outros. Trabalhando com bela fotografia contrastada e composições que valorizam a imensidão dos espaços abertos e a intimidade da casa, o filme demonstra cuidado em capturar o maravilhamento diante destes cenários.
Talvez o estetismo se aproxime do fetiche dos europeus no retrato da alteridade. A vontade de tornar uma rotina mais bela do que é para os próprios esquimós – vide os cadáveres de animais brilhando ao sol, a composição monumental da pesca – pode ser lida como exotismo. Mas a abordagem também poderia representar um afeto ingênuo de quem pretende demonstrar respeito por aquela cultura através da máxima beleza – mesmo que o efeito seja a perda do realismo em detrimento da idealização.
Rumo à conclusão, a tênue linha narrativa se torna mais clara, em ares clássicos. Nanook precisa fazer uma jornada pessoal e acertar contas com o passado. Apesar de pouco original, a aventura faz bom uso dos silêncios e oferece uma cena final comovente, por dizer muito sobre o estado afetivo do protagonista sem uma única palavra. Ága, vale lembrar, é a filha de Nanook e sua esposa, que abandonou a casa dos pais para viver na cidade e trabalhar em uma mina. Por isso, contrariou o interesse de uma geração que preferia ver seus filhos reproduzirem as atividades dos ancestrais.
Através do impasse entre Nanook e a filha, é o eterno dilema entre tradição e modernidade que se aborda, e também a oposição entre o documentário de 1922 e a ficção de 2018. Lazarov eleva o interesse de sua obra quando questiona a herança do projeto e sublinha as transformações ocorridas em cem anos de cinema.
Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.