Caravana radicalizaray
por Taiani MendesTempos sombrios tradicionalmente servem de matéria prima para a produção das mais provocativas artes. Considerando o longo período e a profundidade da crise política nacional, pode-se dizer que os realizadores brasileiros em longa-metragem ainda estão acanhados, mas Sol Alegria, novo filme de Tavinho Teixeira (codirigido por sua filha, Mariah), surge como uma brilhante barraca de lanche pronta para saciar a fome do meio da madrugada, quando tudo mais se encontra fechado.
Atraente, bem servido e necessário, o “alimento”/filme é tudo que você mais quer e precisa naquele momento, o que dá ao processo de ingestão um delicioso prazer que até independe do gosto e ignora sem culpa as normas da vigilância sanitária. A saciedade chega rapidamente e são tantos ingredientes e condimentos que é complicado identificar e saborear todos, uns inevitavelmente anulando outros. O principal tempero da comida, no entanto, é a fome e ela no caso abunda.
Na trama, um pai (Tavinho Teixeira), uma mãe (Joana Medeiros) e seu casal de filhos incestuosos (Mariah Teixeira e Mauro Soares) pegam em armas e colocam o pé na estrada para desestabilizar uma sociedade governada por pastores corruptos que contam os dias para o apocalipse. Uma distopia assustadoramente próxima que, em termos de fotografia, bebe dos igualmente conturbados anos 1970.
Falando na época, é fácil durante a sessão lembrar de Tatuagem, cuja trupe artística pode ser considerada caretinha na comparação com o clã devasso e as freiras cultivadoras de maconha que os acolhem na falange Sol Alegria. O filme de Hilton Lacerda introduziu em 2013 a "Polka do Cu" do Dj Dolores e o destaque ao tabu anal é retomado agora em discurso da personagem de Mariah em nome da potência do orifício.
Um diferencial importante, no entanto, é que os protagonistas dos Teixeira estão longe do simples papel de guerrilheiros da liberdade, heróis revolucionários, transgressores admiráveis. “Divinamente amorais”, como afirma o próprio filme, são perigosos, imprevisíveis, dissimulados, talvez do passado, talvez do futuro, talvez de outro planeta e ainda confundíveis com uma família padrão exemplar. Estão incríveis os quatro atores principais, especialmente Joana como a intimidadora Mãe e Mariah como a insubordinada última esperança.
A diversão no camp Sol Alegria vem da insurreição desejada, do surreal que nada tem de nonsense, das reações imediatas livres das amarras do parar e pensar, das contradições e reconhecimentos, do desespero, por que não? O banquete crítico inclui personagem do longa anterior de Tavinho, Batguano; momentos musicais – um especialmente muito bonito, estrelado por Ney Matogrosso –; quebra de quarta parede; Coca-Cola; sexo gráfico; citações de canções populares; circo mambembe; e muita metalinguagem, num finíssimo uso de projeções que conduz o longa-metragem do capenguismo à vanguarda inventiva.
Sol Alegria vai tornando-se charmosamente caótico conforme a narrativa avança, até se encerrar numa provocação. A caracterização dos membros da família como libertinos se sobrepõe à aventura política que teria toda a força necessária para guiar a trama de forma mais articulada (sem com isso perder sua excentricidade), mas de uma forma ou de outra o grito é ouvido: As gay, as bi, as trans, as convertida e as sapatão tão tudo organizada pra fazer revolução.
Filme visto no 7º Olhar de Cinema, em junho de 2018.