O sobrenatural é uma forma de loucura?
por Bruno CarmeloÉ difícil expressar tamanha surpresa diante de um filme como Hereditário. Dentro de um gênero desgastado como o terror sobrenatural, este projeto comprova que ainda é possível ser profundamente original, combinando elementos típicos com grande pretensão visual e narrativa. Os críticos norte-americanos correram para compará-lo com O Exorcista e O Iluminado, embora a aproximação não tenha muito sentido – trata-se de filmes totalmente diferentes. Ela serve, no entanto, para ressaltar a vontade da crítica de destacar o grande impacto desta obra, e o pressentimento de que Hereditário pode marcar uma época, servir de referência, tornar-se um clássico. Críticos nunca foram bons futurólogos, mas seria ótimo se este terror ganhasse o reconhecimento que merece.
Para explicar o que faz do projeto de Ari Aster algo tão diferente da média, vamos por partes, ou melhor, por tópicos. 1) Fuga dos clichês. Esse elemento não é suficiente para que se considere um filme excelente, mas dentro do terror, é indispensável para se sobressair. Não espere jump scares – os tradicionais sustos com seres malignos pulando em frente à câmera e a trilha sonora aumentando o volume para potencializar o impacto. A música não antecipa as ações, não há monstros propriamente ditos, nada de efeitos visuais fáceis. Os “vilões”, caso existam, são apenas os membros da família Graham, constantes vítimas de doenças mentais há gerações, reagindo à morte da matriarca. Ou seja, não existe uma “entidade maligna” vinda de parte alguma como um recurso narrativo fácil, apenas a manifestação extrema de uma dor universal, e passível de identificação com qualquer um. Isso nos leva ao próximo ponto:
2) A reinterpretação do sobrenatural. O núcleo familiar desta história é liderado por Annie (Toni Collette), mulher cuja mãe, filha e pai sofrem ou sofreram de distúrbios psicológicos graves, e por Steve (Gabriel Byrne), homem equilibrado, simples, quase apático. À medida que fenômenos estranhos acontecem ao redor da família, Annie encontra indícios de que possam ser manifestações psicológicas, mas prefere acreditar na leitura paranormal. Steve, por sua vez, encontra cada vez mais indícios sobrenaturais, mas mantém suas crenças científicas e céticas. Eles representam duas maneiras opostas de ler as mesmas imagens, algo que persiste em todo o filme: as perturbadoras cenas de Hereditário podem ser a “prova” de uma manifestação sobre-humana, ou a simples metáfora de uma mente perturbada e afetada pelo luto. O filme não possui uma única verdade: ele se oferece como projeto ambíguo, passível de discussão de acordo com as crenças do espectador. Neste sentido, respeita a inteligência do público.
3) O poder da sugestão. Algo que o projeto compreende brilhantemente é a importância de apelar para o imaginário de atrocidades que toda a pessoa possui em si. A cada cena assustadora – sempre metafórica, poética, próxima do pesadelo – outra é apenas sugerida em metáforas ou diálogos. Depois de nos posicionar junto da protagonista Annie, somos levados a questionar seus atos passados, e também a veracidade de seu ponto de vista. Ela estaria ficando louca? Sua visão de mundo é confiável? As confissões em um grupo de ajuda e as conversas com a amiga Joan (Ann Dowd) atingem um tom de perversidade muito mais forte do que teriam caso fossem mostradas. Ari Aster compreende algo que franquias como Jogos Mortais nunca entenderam: se você mostra demais, e repete morte após morte, o resultado é a anestesia do espectador. As diversas cenas de morte em Hereditário plantam dúvidas, mesmo diante da prova em imagens. “Isso realmente aconteceu? É sério?” deve ser uma reação constante do público, já que o diretor trabalha com sons perturbadores fora do quadro, narrações perversas e não coincidentes com a imagem, acidentes que jamais revelam plenamente as suas circunstâncias. O espectador é convidado a projetar os seus próprios medos, a enxergar aquilo que deseja – ou teme – ver. Não há nada mais assustador do que isso.
4) Ambição estética. Este projeto funciona como terror, suspense, mas também um drama e um “filme de arte”, no sentido de buscar a originalidade das composições, a reflexão e o prazer estético, ao invés de apenas provocar sensações como a maioria dos casos de terror. O uso das casas em miniatura para dialogar com a própria casa dos Graham é espetacular, por sugerir a noção de controle externo, com os personagens sendo meras peças de algo maior – o sobrenatural ou a loucura, como preferirem. A reencenação de traumas em miniatura é ao mesmo tempo perversa e terapêutica, sincera e perturbadora, além de fornecer uma representação dentro da representação, com uma sucessão de camadas de leitura e de sentido. As rimas visuais – o vermelho do aquecedor com o vermelho do fogo, a cadeira vazia no grupo de apoio com a cama vazia da falecida, o corpo da avó com o corpo de outra personagem – produzem um efeito labiríntico. Temos imagens controladas demais (planos fixos, cortes secos) associadas a sentidos amplos demais: esta é a receita ideal para provocar um bem-vinda senso de desorientação através do uso inteligente da linguagem cinematográfica.
5) Atuações antinaturalistas. A maioria dos filmes de terror recentes traz situações excepcionais com atores atuando da maneira realista dentro daquele contexto. Este é um caminho seguro, e plenamente funcional, adotado por sucessos como Invocação do Mal. Mas Hereditário segue no caminho inverso: parte de situações comuns – a perda de um familiar, o sonambulismo, um acidente de carro – e transforma as atuações de modo a fugirem do naturalismo. Toni Collette, excelente, cria expressões de pavor dignas dos quadros expressionistas, buscando uma deformação cênica interessantíssima – e jamais acentuada por trilha ou outros recursos. Quando o terror está nos rostos, ele não se encontra no resto da estética. Ao mesmo tempo, as pequenas deformidades da filha Charlie (Milly Shapiro) são representadas com ternura e pudor, longe do deboche, nem da monstruosidade. São Annie e o filho Peter (Alex Wolff) que recebem a oportunidade de brincar com a expressão do horror, com a maleabilidade cada vez mais plástica e horrível dos corpos.
6) Final aberto. A conclusão pode ter frustrado muitos espectadores e críticos que se questionam, afinal, o que de fato acontece na trama. Mas a dúvida é um de seus atributos mais fortes: sem tirar o pé do acelerador, sem se preocupar em esclarecer e agradar a um público maior, o diretor Ari Aster aposta todas as fichas numa conclusão extrema e ampla. É assustador assistir a imagens tão radicais sem saber exatamente o que significam. Este não é um filme que não se fecha, e sim um projeto que escolhe se fechar de modo ambíguo: o roteiro fornece indícios suficientes para duas ou três leituras diferentes, e cabe ao espectador tirar as conclusões necessárias do espetáculo insano de corpos e almas, da loucura e do sobrenatural. Sustos e monstros são facilmente esquecidos após a sessão, mas não deve ser fácil tirar esta experiência da cabeça tão cedo. Por exigir muito de seu espectador, por provocá-lo, por fornecer algo que nunca tinha visto – pelo menos não desta maneira, com esta combinação específica de imagens, nem esta intensidade – Hereditário fornece um banquete maravilhosamente indigesto e memorável.