Queda livre
por Bruno CarmeloAs ações desta comédia sueca giram em torno de uma personagem só: Nojet (Léonore Ekstrand), mulher de 68 anos de idade que acaba de perder o pai e herdar diversos imóveis, entre eles um edifício com apartamentos alugados. Ela é definida como uma pessoa insensível – é a única que não chora no funeral –, além de pragmática e gananciosa. De repente, a mulher que jamais atravessou dificuldades financeiras acumula um patrimônio ainda maior. Em seguida, fica pensando em como torná-lo o mais rentável possível. Quem sabe através da cobrança de contratos de aluguel?
Os diretores Axel Petersén e Mans Mansson colam a câmera a uma mulher de difícil identificação com o público, pela evidente misantropia. Mesmo assim, têm certeza de que ela é divertida o suficiente para carregar uma narrativa inteira. O roteiro funciona como uma sucessão de esquetes, na qual Nojet maltrata o irmão, o advogado, o síndico do prédio e os próprios moradores. Não existe uma evolução propriamente dita, apenas um acúmulo de cenas com idêntico teor de deboche por qualquer personagem além da protagonista. A consequência para o público pode ser a intensificação do humor, ou então o tédio oriundo da repetição. Pelo menos, ninguém reclamará da falta de coesão em The Real Estate.
A odisseia pop-punk é coroada por uma escolha estranhíssima de planos muito próximos. É provável que nenhuma imagem do filme traga um corpo inteiro, apenas partes de braços, de rostos, de objetos, num movimento incessante da câmera para desfilar entre todos os seus minúsculos centros de interesse. Petersén e Mansson giram a câmera em plongée, em contra-plongée, na diagonal, vão de um lado a outro como se tivessem medo da imobilidade, da calma. O projeto se assemelha a um longo videoclipe, ordenado pela necessidade de movimento, de ação, de humor a cada cena. Nojet não adquire profundidade psicológica, apenas tiques construídos por uma atriz evidentemente talentosa, porém descontrolada.
A trilha sonora, um dos grandes destaques do filme, consiste basicamente numa inversão de valores: para representar uma estética anárquica, os diretores utilizam uma peça de estilo clássico, erudito, repetindo-a em momentos de violência exacerbada. Alguns críticos louvaram esta escolha como algo completamente revolucionário, talvez sem levar em consideração que pelo menos desde Laranja Mecânica (1971), o cinema utiliza o recurso à exaustão. O efeito é interessante, possivelmente capaz de atenuar um pouco o ritmo frenético. Mas não oferece, em si, nenhuma construção particularmente questionadora dos sons.
Os excessos culminam na impressão de que a máxima ousadia é a inconsequência. Matemos vários moradores, se for o caso. Vale tudo! A sensação de aleatoriedade contamina The Real Estate, para o qual a falta de limites, de discurso ou de ponto de vista se traduz em liberdade de expressão. O roteiro é vazio, mas consciente e orgulhoso disso. Em sua aventura pueril, o resultado lembra um Jackass do cinema de arte, um desses discursos de que “o mundo está muito chato”, “todo mundo é igualmente insuportável”, então a solução é sair metralhando a todos - como inclusive sugeriu um político brasileiro recentemente. O caminho entre o anarquismo e o conformismo se revela menor do que parecia.
Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.