O triunfo de um passado censurado
por Barbara DemerovMuitos documentários pautados pela retrospectiva da vida de alguém seguem basicamente a mesma estrutura. Não há fórmula mágica quando o assunto é abordar um personagem que viveu (ou ainda vive) uma longa história cujo efeito deixou alguma marca no mundo. O que difere este tipo de filme de outras obras e traz visões distintas para quem assiste é a riqueza e variedade do material exposto.
Neville D'Almeida: Cronista da Beleza e do Caos é um destes casos em que não dá para saber qual é a maior força: a obra em questão ou a trajetória contada em detalhes. Neville D'Almeida, apesar de não ser um nome tão proferido atualmente, é uma figura extremamente relevante para o cinema brasileiro, especialmente em tempos que mostram-se necessárias a valorização e atenção ao nosso próprio passado.
O documentário não perde o fôlego ao longo de sua duração e transita por diferentes décadas com precisão. Da Ditadura Militar até os dias atuais, da censura a uma liberdade criativa mais ampla, grande parte dos marcos da carreira de Neville não passam despercebidos e são abordados com a atenção e duração necessários.
Mario Abbade faz um excelente trabalho com as escolhas dos arquivos utilizados. Tal cuidado no direcionamento do documentário também eleva sua qualidade em momentos como o do raro vídeo de uma reunião em que Neville e sua equipe negociam com a censura o que deve ou não deve ser limitado ao público. Enfrentando os anos de chumbo e a pressão intensa, o diretor conseguia se esquivar do próprio país ao apresentar seus longas em festivais internacionais – inclusive em Cannes, na mesma época em que a Nouvelle Vague e o cinema de autor crescia.
A variedade de entrevistados é outro ponto forte do documentário e traz nomes como Maria Gladys, Regina Casé, Lima Duarte, Carlos Diegues e Luiz Carlos Barreto, assim como críticos de cinema como Luiz Carlos Merten. Sonia Braga, Claudia Raia e Vera Fisher, estrelas de Neville em diferentes momentos, não prestam depoimento mas também não se ausentam da narrativa, mostrando a importância que o papel da mulher possui na cinematografia do diretor.
A figura de Neville também auxilia na imersão e no entendimento de quem está por trás dessa mente que preza o autoral acima de tudo. Seu estilo e até o modo de falar, com convicção e presença, o tornam um personagem muito interessante. O cineasta pode ser considerado uma pessoa difícil de lidar, mas fica claro que as pessoas, seja no passado ou no presente, ouvem seus pensamentos e visões. A experiência como diretor não se limita a ser definida como parte do Cinema Marginal, como é cabível para explicar em qual contexto ele mais se encaixou no auge.
O documentário discute muito esta questão do gênero e de como ele superou as dificuldades para fazer um cinema de autor, sem se preocupar com fatores externos. Filmes como A Dama do Lotação, Os Sete Gatinhos e Rio Babilônia demonstram bem o procedimento de seu trabalho e o relacionamento com o elenco de cada projeto.
Nem marginal, nem pornochanchada: existe um meio termo para Neville D'Almeida, que paira sob estes dois gêneros e consegue ser deslocado para um lugar singular dentro do audiovisual nacional. É uma tarefa difícil defini-lo, e sua figura é intrigante por tal razão. Neville passa longe de ser "maldito" (palavra que costuma usar quando explica a maneira como alguns encaram o Cinema Marginal), e agora passa a figurar dentro de um dos documentários mais completos sobre uma época que não deve ser esquecida. Assim como sua obra.
Filme visto no 25º Festival de Vitória, em setembro de 2018.