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    Nós, os Animais
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Nós, os Animais

    Fabricando traumas

    por Bruno Carmelo

    É ótimo encontrar no cinema uma investigação tão complexa da psicologia infantil quanto aquela proposta em Nós, os Animais. Enquanto uma parte considerável das produções voltadas às crianças limita-as a consumidoras de estímulos efêmeros (“Criança gosta de filme colorido e com mensagens bonitas”), esta produção adulta interpreta a experiência infantil de maneira dolorosa, violenta, pelo enfrentamento de situações com as quais ainda a criança ainda tem condições de lidar. Este seria um período de formação, mas também de choque de uma personalidade particular com as regras codificadas da sociedade.

    O símbolo destas descobertas é Jonah (Evan Rosado), que acaba de completar dez anos de idade. Ele é o mais novo de três irmãos com idades muito próximas. O garoto presencia o pai pular entre diversos subempregos, embora ainda não compreenda a noção de pobreza; presencia a mãe ser agredida, embora não saiba a definição de abuso doméstico; é tratado como estrangeiro por seu tom de pele, ainda que desconheça o termo racismo; passa a ter curiosidade e interesse por um vizinho loiro mais velho, mesmo se entender o que é a homossexualidade. Para Jonah, tudo é novo, simultaneamente fascinante e amedrontador.

    O diretor Jeremiah Zagar retrata este momento com notável potência. Utilizando a câmera na mão e resgatando a textura granulada da película, ele imerge num cinema sensorial, do tipo que se esforça em captar os raios de sol atravessando a janela, um mosquito pousando sobre a pele dos personagens, os sons das ruas e dos cômodos vizinhos. O corpo ganha um tratamento natural e intenso: além dos garotos prestes a entrarem na puberdade, os pais expõem os corpos ao sexo, à dança, às agressões, aos abraços, à água do lago e à lama do quintal. Nesta relação instintiva com a natureza se encontra a metáfora animalesca do título, como se todos fôssemos bichos em busca de autodefesa e da defesa daqueles que amamos. “Nós nunca conseguiremos fugir disso”, lamenta o pai diante da miséria permanente. Por isso, esgota-se fisicamente na sobrevivência diária.

    O ponto de vista coincide com o olhar das crianças, e de Jonah em particular: o que o garoto não enxerga, o público também não vê, ainda que seja capaz de deduzir muitas informações. A predileção pela compreensão infantil justifica as metáforas simples e bem trabalhadas, como os desenhos perturbadores do protagonista, seu desejo de voar como um pássaro ou mesmo a certeza mórbida de que o buraco cavado no quintal corresponde a um túmulo feito para ele. A dureza da vida de mulheres, negros, imigrantes e gays é retratada de modo orgânico e poético. Existe tanto amor quanto raiva naquela família – são particularmente belas as cenas em que os garotos se protegem durante a agressão do pai, ou quando tentam alegrá-lo dentro do caminhão após perder o emprego.

    Se existe um porém neste banquete de imagens é o temor de que Zagar transforme Nós, os Animais num exercício tão estilizado que beire a vaidade, a forma pela forma. Algumas cenas se aproximam perigosamente do videoclipe, com ecos formalistas de Terrence MalickSpike Jonze e Michel Gondry. Felizmente, os maneirismos não tomam controle da narrativa, e o fator humano se sobrepõe. As atuações precisas de Raul Castillo e Sheila Vand, assim como o excelente trabalho efetuado com os atores mirins, coroam o resultado de uma direção excepcional em sua capacidade de esculpir pessoas, espaços, imagens e ritmos, com um refinamento e uma visão política exemplares.  

    Filme visto no 26º Festival Mix Brasil da Cultura da Diversidade, em novembro de 2018.

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