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    Lembro Mais dos Corvos
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Lembro Mais dos Corvos

    Longa conversa noite adentro

    por Francisco Russo

    "Se eu me tornar cineasta só quero rodar comédias românticas, para compensar todo o romance que não tive na minha vida."

    Um soco no estômago mesclado à ternura de sua interlocutora. Assim pode ser descrito o corajoso documentário Lembro Mais dos Corvos, primeiro longa-metragem dirigido por Gustavo Vinagre, que na verdade é uma imensa ode à sua personagem principal: Julia Katharine, mulher transexual, que se põe a falar de sua vida diante da câmera, sem preconceitos nem papas na língua.

    De formato extremamente simples, uma câmera gravando os depoimentos de Julia em sua própria casa ao longo de uma única noite, Lembro Mais dos Corvos é o típico caso em que seu personagem é maior do que o filme em si. No caso em questão isto nem chega a ser um demérito, pois o intuito do diretor era justamente este. Amigo pessoal de Julia, a quem já escalou em alguns de seus curtas pregressos, Gustavo utiliza tal proximidade para arrancar dela depoimentos reveladores e muitas vezes dolorosos, que expõem situações pesadas envolvendo pedofilia, abuso sexual e todo tipo de preconceito. Entretanto, a sinceridade e a complacência usadas a cada nova resposta desconjuntam o espectador: ao mesmo tempo que toma conhecimento de situações atrozes, vê em cena esta mesma mulher relatando os casos com uma surpreendente normalidade, sem jamais se vitimizar.

    É neste aspecto que o documentário se torna grandioso: ao invés de explorar a miséria alheia, não a esconde para usar sua personagem principal como exemplo de superação, mesmo sem jamais ter esquecido (e compreendido) o que lhe passou. Ao mesmo tempo, abre espaço para que uma transexual exponha seu mundo de forma franca, com anseios, desejos e dissabores, muitos decorrentes do preconceito. Mais ainda: desvenda o cinema como uma poderosa válvula de escape, que lhe ajudou a superar o inferno de cada dia. Em meio a citações a grandes filmes e diretores, e uma história deliciosa de quando trabalhou em uma locadora, ela sonha através da sétima arte - e daí vem o desejo em dirigir comédias românticas.

    Entretanto, apesar do tocante conteúdo que apresenta, Lembro Mais dos Corvos também tem seus problemas. O mais grave deles é em relação à captação de som, especialmente ao que é dito pelo próprio diretor, fora de quadro. Se é possível entender perfeitamente o que Julia diz, o mesmo não acontece com as pontuais participações de Gustavo Vinagre, o que obriga o espectador a apelar para a legenda em inglês para compreender o que é dito - lembrando que tal artifício existe apenas porque o filme foi visto em um festival, ou seja, ao chegar no circuito comercial este será um problema grave para o espectador.

    Além disto, por mais que o filme siga sempre em tom de naturalidade e intimidade entre os envolvidos, há um corte brusco pouco antes de Julia falar sobre suicídio. Por mais que seja compreensível, e esperado, que nem tudo desta longa conversa noite adentro esteja no documentário, tal mudança de tom tão abrupta provoca um certo estranhamento, não só estético mas também narrativo.

    Ainda assim, há muito a se apreciar neste documentário ao mesmo tempo belo e doloroso. Com a insegurança típica de quem desvenda ao público os bastidores de sua vida, Julia pouco a pouco conquista a afeição do espectador justamente pela coragem e desenvoltura com a qual efetua seu monólogo, mesmo nos momentos mais duros, mas também sabendo rir dos bons momentos que teve. Sem falar que o filme traz alguma pérolas, como a análise de Ninfomaníaca: "É conto de criancinha perto do que eu fazia. Lars von Trier devia ter me procurado para fazer um filme melhor."

    Filme visto na 21º Mostra de Tiradentes, em janeiro de 2018.

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