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    A Vaca Vermelha
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    A Vaca Vermelha

    Tradição X modernidade

    por Bruno Carmelo

    Para as três grandes religiões mundiais - cristianismo, islamismo e judaísmo - a dominação masculina é historicamente justificada, entre outros, pela necessidade de proteger as mulheres dos perigos do mundo. As esposas e filhas são mantidas em casa e têm seus corpos cobertos em nome de sua preciosidade, afinal, são elas que procriam e garantem a evolução da espécie. Assim, a restrição à liberdade feminina é apresentada como um processo de valorização, à beira do elogio: te prendo porque te amo.

    Esta lógica é trabalhada no drama israelense A Vaca Vermelha, que encontra no animal raro um símbolo para a condição feminina. Quando Yehoshua (Gal Toren), um líder religioso, se depara com um novilho de coloração ruiva, interpreta o fato como um milagre, baseando-se nos dizeres da Torá. A vaca é imediatamente presa num cercado e admirada pelos moradores das redondezas. Quem se encarrega de cuidar do animal é a filha dele, Benny (Avigail Kovari), garota protegida e controlada pelo pai. Quando ela começa a expressar a sua sexualidade, masturbando-se no quarto e iniciando um romance com uma colega, o pai soa o sinal de alerta.

    Assim, está lançado o embate entre tradição e modernidade, entre homens e mulheres, entre a heterossexualidade padrão e a homossexualidade que se manifesta naturalmente entre as duas garotas. A exposição de opostos poderia soar esquemática, porém a diretora Tsivia Barkai trata de inserir o espectador num contexto em andamento, sem apresentar personagem algum. A confusão provocada por esta escolha reflete bem a posição de Benny, que se sente perdida diante da devoção religiosa do pai, como uma estrangeira em meio a tantas preces e regras judaicas. A garota, de cabelos avermelhados como a vaca, começa a elaborar planos para uma fuga simbólica e efetiva do cercado ao redor.

    O filme efetua um trabalho excelente de câmera e montagem. Através de longos planos-sequência, a cineasta cria coreografias precisas dentro da casa e pelas ruas da cidade, valorizando o espaço urbano e a sensação de opressão social. Os locais estão sempre repletos de pessoas, espremidas nos enquadramentos e espiando Benny a cada passo. Barkai explora bem a profundidade de campo e os sons fora de quadro, criando imagens tão simples quanto poéticas (a garota dormindo dentro do transporte público, desfocada no primeiro plano, enquanto a cidade desfila ao fundo, nítida, como se a vigiasse).

    A Vaca Vermelha ainda possui o mérito de não demonizar o pai religioso, visto apenas como um sujeito incapaz de compreender qualquer pensamento diferente do seu. Não por acaso, ele flerta com o extremismo e defende ações violentas contra mesquitas. Dentro de casa, no entanto, ele se assemelha ao pai protetor comum, o que fornece uma identificação muito mais interessante e complexa do que a eventual construção de um vilão. Toren e Kovari estão muito bem em seus papéis, preferindo os mínimos gestos a uma expressividade acentuada. Alguns elementos restam pouco aprofundados - a automutilação de Yael, a ausência da mãe -, no entanto o filme consegue combinar o cinema ultrarrealista, cuja câmera na mão acompanha a protagonista a todo instante, com uma construção metafórica e delicada da libertação feminina.

    Filme visto no 26º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2018.

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