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    Dovlatov
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Dovlatov

    A dança dos artistas rejeitados

    por Bruno Carmelo

    Julgando pela sinopse oficial, esta parece ser uma biografia convencional do escritor Sergei Dovlatov, cujos manuscritos foram censurados pelo regime comunista durante o fim dos anos 1960. No entanto, o biografado é apenas uma porta de entrada para representar a situação de todos os artistas – escritores, pintores, atores, dubladores – durante o regime. Enquanto procura algum meio de driblar a proibição e publicar seus textos, Dovlatov encontra muitos colegas na mesma situação. O cenário é de desolação, mas jamais conformismo. Todos os jovens criadores estudam possíveis concessões às regras para apresentarem seus trabalhos.

    Apesar do caráter político da trama, o fator que mais chama a atenção é a sua construção estética. O diretor Alexey German Jr. trabalha com cenas de grupos barulhentos e ocupados em festas, em saraus de poesia ou casas de edição. Nestes casos, opta por longuíssimos planos-sequências que incluem personagens entrando e saindo do enquadramento, interagindo uns com os outros, se movimentando em todos os sentidos. A câmera acompanha cada personagem entre salas, corredores, quartos, com uma coreografia insana na qual o trabalho de iluminação jamais é comprometido. Cada rosto, corpo, voz e gesto é captados em detalhes, numa única imagem. Um único enquadramento inclui uma quantidade impressionante de texturas, ações e personagens, solicitando uma atenção ativa do espectador.

    O malabarismo das imagens poderia traduzir um mero preciosismo do autor, mas serve de ferramenta para captar o dinamismo das interações, a maneira espontânea de falar, de se vestir, de agir. Ironicamente, um estilo completamente controlado de filmagem serve a reproduzir a espontaneidade. A pompa e a sobriedade atribuídas às biografias históricas desaparecem em nome de uma releitura livre dos fatos. É um alívio perceber que o diretor não coloca fotos das pessoas reais “lado a lado” com seus atores nos créditos finais, para o espectador comparar a fidelidade das caracterizações. Sem a preocupação de se colar aos dados exatos, o filme pode investigar o desejo, angústias e outros sentimentos que não figuram nos livros de História.

    Além disso, o filme surpreende pela leveza e bom humor. Estes elementos são construídos através dos excelentes diálogos, repletos de ironias e referências a outros artistas conterrâneos – Dostoievki, Tolstoi, Pudovkin etc. – e também pela originalidade dos cenários, a exemplo de uma reunião com construções civis absurdas vistas ao fundo, através da janela, e a passagem dentro de uma mina, com fotografia muito cuidadosa. Durante boa parte da narrativa, o espectador pode se sentir num pesadelo de Kafka – não por acaso, um dos escritores citados pelos personagens.

    Sergei (o ótimo Milan Maric, cujo discreto sarcasmo jamais se transforma em arrogância) é um artista fracassado, porém plenamente consciente de sua situação. Com bom humor, brinca com a percepção de todos ao redor sobre o que o artista deveria ou não fazer. Ele escuta pedidos para atenuar o conteúdo político de seus textos, criar histórias infantis ou ficções medievais, mas rejeita a todos. A questão da integridade artística é exposta com a devida importância dentro do filme.

    Na segunda metade, a narrativa transforma sensivelmente seu tom e sua abordagem. O humor quase desaparece, a autoironia do escritor se transforma em autopiedade, e o filme abraça uma forma mais convencional de drama, pendendo à tragédia e ao martírio. É uma pena que o olhar corrosivo não se mantenha até o final. Talvez German Jr. acredite que, após as críticas, seja hora de investir no humanismo do personagem e resgatar um peso – geralmente interpretado como respeito – que a obra não possuía. Essa segunda parte, ainda elegantemente filmada, enfraquece o conjunto e retira a sua principal originalidade.

    Apesar da irregularidade, o filme oferece uma bela leitura da história de Dovlatov e do papel social da arte, ao mesmo tempo em que imprime um olhar próprio e uma estética arrojada. Se existe algo de que o subgênero das cinebiografias precisa, é de ousadia na linguagem e um respeito pelo biografado que não se traduza em subordinação ou idealização.

    Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.

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