Algumas mulheres têm pênis
por Bruno CarmeloPara uma artista iconoclasta, um filme iconoclasta. Este documentário brasileiro acompanha o fluxo criativo tão rico quanto anárquico de Linn da Quebrada, cantora, performer e ativista trans. Ela reivindica sua posição de mulher, enquanto preserva o pênis e o evita o implante de seios. O corpo de Linn constitui um ato político, e também o material através do qual constrói a sua arte. Para ela, o masculino e o feminino são questões de identidade, ao invés de genitalidade. Além disso, acredita que os indivíduos são livres para buscarem o prazer onde quiserem, com quem quiserem, do modo que quiserem. Os corpos são livres, fluidos, transformáveis e transformadores.
Estas são apenas algumas das ideias de Bixa Travesty, articuladas através de uma estética igualmente libertária. Os cineastas Kiko Goifman e Cláudia Priscilla intercalam apresentações de Linn, trechos de suas reflexões numa rádio, momentos de intimidade em casa, encenações queer-kitsch em banheiros e saunas, intervenções pela cidade e afins. O projeto sublinha a necessidade de apropriação do espaço urbano, apesar das convenções sociais que buscam confinar o corpo transexual à margem e à invisibilidade. Linn é o centro em torno do qual orbitam as ideias, imagens e corpos do filme.
Além de se tornar centro, a artista também se posiciona como sujeito. Isso vai de encontro à objetificação propiciada por alguns documentários bem-intencionados, porém limitados à representação distanciada e condescendente de indivíduos LGBT. Aqui, é a protagonista quem controla o discurso, é ela quem fornece as imagens e temas, quem determina o ritmo e influencia no corte final. Não por acaso, é creditada como co-roteirista num processo de criação horizontal, como explicou a atriz numa entrevista. A noção de igualdade em frente às câmeras foi pertinentemente reproduzida atrás das câmeras.
Enquanto a artista destrincha temas complexos em suas falas, Bixa Travesty proporciona uma experiência leve, divertidíssima e corrosiva, como convém às composições de Linn. Pau, cu, buceta e afins são ditos e mostrados sem pudor algum. De acordo com este ponto de vista, o corpo é um terreno de exploração pessoal, de prazer próprio, não podendo ser freado por tabus, pudores ou quaisquer regras morais e institucionais. As canções sobre o prazer do sexo, a discussão com a mãe sobre a feminilidade e a provocação com a amiga Jup do Bairro confirmam a ideia de que estas construções não emanam de uma persona fictícia. Pelo contrário, são vividas organicamente pela artista no dia-a-dia.
O cinema brasileiro independente tem produzido diversos filmes LGBT de qualidade, com discursos progressistas e olhar empático às minorias. Mesmo assim, poucos são tão radicais quanto este documentário, que forma com o excelente Pinta (2013) uma dupla de projetos sem medo de moldar e reconfigurar os corpos. Afinal, ao contrário do que pregam os discursos conservadores, a arte serve para brincar com significados e sensações, e não precisa se conformar às crenças de ninguém além dos criadores.
Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.