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    Culpa
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Culpa

    Um conto de terror

    por Bruno Carmelo

    A jovem Iben é sequestrada pelo ex-marido Michael, que tem antecedentes criminais e luta pela guarda das crianças. Ameaçando-a com uma arma, ele a coloca dentro de um carro e começa a dirigir pela autoestrada, sem um destino preciso. Os filhos pequenos ficam em casa sozinhos. A tensa história poderia se encaixar num suspense clássico, se não fosse por um fator essencial: o espectador não vê Iben, Michael, nem a pequena filha Mathilde. Não sabemos que aparência têm, onde se encontram, para onde vão. Isso porque eles se limitam a vozes ao telefone, escutadas por Asger (Jakob Cedergren), policial e atendente do setor de emergência.

    Esta é ao mesmo tempo a história de Iben e de Asger - uma ocupando o som, e o outro, a imagem. O policial adoraria sair para a rua, pegar um carro e partir em busca da mulher sequestrada, mas ordens dos superiores o impedem de fazê-lo. Portanto, o suspense dirigido por Gustav Möller se constrói sobre uma curiosa omissão: o protagonista precisa resolver o caso sem sair da delegacia. Ele tenta ligar para outros policiais, para a vítima, para o criminoso, para a filha, para seus contatos pessoais. O nosso herói não é um homem de ação, como de costume nos códigos hollywoodianos, e sim um sujeito de estratégia. Enquanto o som sugere uma aventura tensa, a imagem representa a imobilidade.

    Culpa poderia soar repetitivo, ou tedioso, por mostrar um espaço e um personagem únicos. Felizmente, o cineasta é astucioso o bastante para criar um elegante ambiente em scope, utilizando sabiamente a montagem para explorar diversos ângulos, luzes e ritmos. À medida que a investigação avança, Asger é colocado em ambientes literalmente mais escuros e apertados, como se a asfixia da mulher sequestrada se transmitisse ao policial. A direção de som sabe usar muitíssimo bem os silêncios, além dos diálogos marcados pelas repetições e incertezas da linguagem oral. Mesmo os ruídos de carros, pneus, setas e para-brisas compõem uma trilha sonora ritmada e empolgante.

    Um dos aspectos mais interessantes do filme é sua capacidade de sugerir imagens sem precisar mostrá-las. O andamento do caso possui tantas reviravoltas e detalhes - físicos ou psicológicos - que o espectador dispõe de elementos suficientes para imaginar sua própria Iben, sua versão de Michael, o interior do carro, a casa do sequestrador invadida pelos policiais. Ao contrário dos blockbusters que colocam seu público em posição passiva, como receptores de estímulos, este projeto solicita nossa atenção para cada nova peça do amplo quebra-cabeça. Retornamos ao cinema como storytelling, e não como espetáculo: os personagens contam a história ao mesmo tempo a Asger e ao espectador, que tentam juntos desvendar o crime em tempo real.

    Culpa não difere tanto das histórias contadas por pais aos filhos antes de dormir, ou às histórias de terror compartilhadas entre adolescentes ao redor de uma fogueira. Em todos estes casos, cabe ao interlocutor preencher as imagens com sua bagagem e experiência pessoais, personalizando a narrativa de modo a tornar a identificação mais forte. Em determinados momentos, a narrativa ameaça transformar Asger no sujeito bondoso e corajoso demais, apenas para segurar as rédeas e preservar o estilo preciso, contido, desenhando discretamente um paralelismo entre o policial e a vítima, ambos corroídos pelo sentimento de culpa citado no título.

    Como Jakob Cedergren é filmado apenas pelo rosto e torso, o ator trabalha muito na variedade das expressões, nos gestos com as mãos tensas, de modo a transmitir o universo particular deste personagem. Ao fim, o projeto soa como uma ousadia e um exercício de linguagem, como se alguém tivesse lançado um desafio a Möller: você conseguiria elaborar uma história angustiante e ágil filmando apenas o rosto de um homem sentado à mesa de um escritório? Desafio cumprido com sobra, através do uso incrivelmente esperto da linguagem cinematográfica. O espectador raras vezes acompanhará com tamanho interesse a jornada de personagens que sequer aparecem nas imagens.

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