Cinema possível
por Francisco RussoÉ impossível analisar Bandeira de Retalhos sem levar em conta a conjuntura em que foi produzido. Ausente do cinema há mais de quatro décadas, o diretor Sergio Ricardo foi convidado a retornar pelas mãos de Cavi Borges, produtor especializado em filmes de baixo orçamento. Da gaveta logo saiu Bandeira de Retalhos, texto escrito pelo próprio diretor baseado em um acontecimento verídico ocorrido em 1977, quando a prefeitura do Rio de Janeiro tentou retirar moradores do Vidigal para a construção de um hotel de luxo. O projeto logo foi encampado pela ONG Nós do Morro, que já havia estrelado com sucesso uma versão teatral do mesmo texto, não só a partir da escalação do elenco mas também em todo tipo de trabalho necessário para que o filme, enfim, acontecesse.
Diante deste contexto, é até mesmo óbvio que o longa-metragem não foi produzido nas condições ideais. Trata-se de um cinema possível, feito na raça, o que se por um lado transborda vontade por outro deixa escancarado os problemas técnicos existentes, que não são poucos. A começar pela fotografia, ora explorando planos bem abertos ora closes com a câmera tremida, por vezes perdendo o foco ou até mesmo o próprio personagem - contraste decorrente da substituição do diretor de fotografia ainda durante as filmagens, e da impossibilidade de se rodar novamente o que já havia sido feito. A edição também é afetada por tal mudança, resultando em sequências onde o áudio continua após o encerramento da cena em si, adentrando a seguinte. Soma-se a isto a iluminação precária em várias tomadas noturnas e também a bizarra falta de sincronia entre o movimento labial do elenco e os diálogos, que desvia a atenção da narrativa a todo instante.
Tais problemas técnicos, é claro, prejudicam bastante o filme - mas não são os únicos. Há também um certo descompasso narrativo entre o que é dito e o que é exibido, fruto em boa parte das mesmas dificuldades financeiras. Situado em 1977, Bandeira de Retalhos mantém diálogos com termos da época, por vezes com um ritmo próprio de rima, mas o figurino e mesmo a ambientação nem sempre seguem o mesmo apuro - há uma cena em que uma câmera portátil moderna aparece, com uma figurante falando ao celular ao fundo. Detalhes que, pouco a pouco, minam a crença do espectador naquela realidade ali retratada. O que é uma pena, pois Bandeira de Retalhos tem o que dizer.
Seguindo a linha de vários filmes do Cinema Novo - contemporâneo do diretor, é bom ressaltar! -, Sérgio Ricardo aqui dá voz aos oprimidos, representados pelos moradores do Vidigal. Há uma sucessão de agressões sociais, em maior ou menor escala: o Estado que deseja expulsá-los do lugar em que vivem, a polícia como meio de execução das ordens impostas, o filho que presenciou o assassinato de seus pais, trabalhadores, e por isso se tornou bandido. São retratos de uma injustiça cotidiana que, infelizmente, ainda repercutem nos dias atuais. Basta relembrar a forma como os moradores da Vila Autódromo foram tratados, em meio às obras para as Olimpíadas de 2016.
Tal defesa do povo e sua convocação para lutar pelo que é seu, no fim das contas, é o interesse maior de Sérgio Ricardo ao registrar esta história real na telona, e o que o filme entrega de melhor. Sem ter como filmar cenas mais complexas, o diretor ainda conseguiu driblar as dificuldades ao optar por um lado documental, inserindo trechos de reportagens antigas sobre o fato, que complementam bem o que é encenado. Além disto, a boa trilha sonora auxilia a narrativa, dando ritmo aos eventos, e Kizi Vaz até é competente como a protagonista Tiana. Mas é só.
Com uma subtrama mal desenvolvida envolvendo um triângulo amoroso, Bandeira de Retalhos ainda apresenta diversas falhas na condução de seu elenco coadjuvante, alguns sem o menor cacoete para atuação. Há também incoerências comportamentais de certos personagens, como os de Antonio Pitanga e Osmar Prado, que beiram o risível. Diante de tantos problemas, mesmo a boa vontade e a dedicação do trabalho coletivo empregado são insuficientes para entregar um filme minimamente razoável. Os erros, técnicos e narrativos, saltam aos olhos a todo instante.
Como curiosidade, um alerta para o trecho de reportagem que surge ao término de todos os créditos finais. Nada supera o brasileiríssimo "o Papa é gente fina", ainda mais dentro do contexto retratado.
Filme visto na 21º Mostra de Tiradentes, em janeiro de 2018.