Guillermo Del Toro e a arte de criar monstros
por Aline PereiraPouco mais de dez anos após dirigir Coração Louco, filme vencedor de dois Oscar em 2010, o cineasta Scott Cooper recebe a benção (e a produção) do também premiado Guillermo del Toro para assinar o filme de terror sobrenatural Espíritos Obscuros. Explorando a lenda do Wendigo, criatura ancestral da mitologia norte-americana, o longa traz às telas um monstro assustador e uma boa história de suspense que conecta o horror do mundo real ao desconhecido. E é justamente por nadar em um mar tão rico que o longa deixa a sensação esquisita de não ter ido tão a fundo quanto parecia querer.
Baseado no conto The Quiet Boy, Espíritos Obscuros se passa em uma cidade nublada e profundamente melancólica no estado do Oregon, nos EUA, acompanhando um mistério investigado por Julia (Keri Russell), uma professora do ensino fundamental, e seu irmão Paul (Jesse Plemons), xerife da cidade. No início do filme, um dos alunos de Julia, Lucas (Jeremy T. Thomas), passa por um acidente aparentemente inexplicável com o pai, e o comportamento perturbador da criança acaba chamando a atenção da professora.
A trama vai se desenrolando para contar o que aconteceu com o pai de Lucas, uma história que passa não só pela presença sobrenatural que dá título ao filme, mas também (e principalmente) por dramas familiares densos que expõem abusos físicos e psicológicos, além de dependência química. Ao unir o terror do monstro aos horrores reais causados pelos seres humanos uns aos outros, Espíritos Obscuros segue um caminho que lembra o outros lançamentos de 2021 do gênero, como Missa da Meia-Noite e Um Lugar Silencioso 2 - uma lista que, aliás, pode fazer com que o longa de Scott Cooper tenha uma passagem mais discreta pelo radar do público.
O que é o Wendigo? Folclore norte-americano é tema de Espíritos Obscuros
A criatura em torno da qual o filme gira chama-se Wendigo, entidade que faz parte da mitologia dos povos nativos norte-americanos e está associada ao frio e à fome. A lenda conta que o Wendigo é um espírito maligno que vive nas florestas e devora pessoas e animais. “O Wendigo traz a mensagem de que se você invadiu um território que não estava autorizado, ele irá consertar a situação. A Terra está aqui há milhões de anos, mas nós nunca podemos destruí-la; ela irá nos destruir e não precisa de nós para viver”, ilustra o cineasta Chris Eyre, representante do povo Anishinaabe, que auxiliou a produção do filme.
É uma boa aposta trazer para as telas elementos que fazem parte de culturas reais e não costumam ser muito explorados em obras tão grandes, mas alguns pontos são importantes para tornar esta presença mais marcante e bem representada. Em Espíritos Obscuros, a presença dos povos nativos é feita pelo ator Graham Greene, um personagem com participação breve, que surge em uma cena para narrar exatamente o que é um Wendigo, sem muito envolvimento no que vem a partir daí. É o bastante para causar o pensamento de “ok, então este é o monstro” ao público, mas enriquecer um pouco mais esta construção - já que a origem da lenda é carregada de elementos densos - certamente traria uma boa tensão psicológica.
Guillermo Del Toro e seus grandes monstros
Mas se falta algo na profundidade da narrativa, ocorre exatamente o oposto na aparência do monstro e é aí que fica mais evidente a ótima influência de Guillermo Del Toro, que chega ao streaming com sua própria série de terror. O visual do filme de maneira geral é um acerto do diretor, instigante e importante para construir o clima ruim da cidade, mas o design do Wendigo se destaca e não perde em nada para lançamentos recentes do cinema, trazendo a sensação do horror profundo causado, por exemplo, pelas criaturas alienígenas de Um Lugar Silencioso 2.
Em O Labirinto do Fauno e A Forma da Água, por exemplo, Del Toro apresenta seres cujo aspecto humano é intrínseco, enquanto a entidade de Espíritos Obscuros vai para o terror bestial, implacável e sem chance alguma de comunicação - uma força incontrolável da natureza, como a representação do Wendigo na lenda indígena original.
Terror e drama de mãos dadas
Falando no aspecto humano do terror, Espíritos Obscuros, como muitos outros filmes do gênero, usa o inimigo desconhecido como alegoria para traumas e problemas enfrentados por pessoas no mundo real. Aqui, a principal discussão é o trauma que sucede o abuso, especialmente durante a infância, quando a negligência dos pais pode causar desvios terríveis no curso da vida dos filhos. Enquanto a história de Lucas é narrada, vemos também alguns flashbacks de Julia, que revelam um passado marcado pela violência dentro de casa.
São estas lembranças que a envolvem tão profundamente com a história de seu aluno e despertam o senso de proteção que faltou na vida dela. A relação entre Lucas e o pai, assim como a da professora e o irmão, conversam diretamente com a quebra de ciclos de violência, expondo o quanto é difícil sair deles e quanta dor este processo pode trazer a quem vive a experiência.
O Wendigo, o filme explica, “quanto mais é alimentado, mais faminto e mais terrível fica”, um paralelo claro a todo o tipo de abuso que, dificilmente acaba por si só, sem ajuda - ao contrário: a tendência é que fique cada vez pior. Cada confronto com o monstro é mais devastador do que o anterior, uma conexão tocante com a violência que já fazia parte da história desses personagens antes de qualquer evento sobrenatural.
Espíritos Obscuros nada na superfície de um mar muito rico
Nesse sentido, Espíritos Obscuros é sensível ao desenhar suas metáforas, relacionando o trauma à entidade sobrenatural. Desnecessário reforçar que abusos físicos e psicológicos deixam marcas profundas e a ferocidade do monstro do filme ilustra bem este horror. Justamente por isso, talvez a história pudesse se tornar mais marcante se fosse um pouco mais sutil: as analogias e referências ao tema são muito frequentes e formada por muitas frases prontas (“ele nunca vai mudar”, entre outras): a insistência em reforçar repetidamente uma mensagem que já é muito clara pode deixar alguns espectadores impacientes.
Espíritos Obscuros passa longe de ser um filme maçante ou tedioso, mas pode causar um sentimento frustração difícil de saber de onde vem. Particularmente, apostaria no potencial não explorado: os temas propostos são muito relevantes e o universo criado é rico, mas não nos deixa fazer parte dele tanto quanto poderia.