A ilusão do controle pode ser fatal
por Aline PereiraO Beco do Pesadelo concorreu em quatro categorias do Oscar 2022 e não é difícil entender por que apareceu em cada uma delas. A visão mágica de Guillermo Del Toro, mais do que comprovada por uma carreira artística primorosa, com obras O Labirinto do Fauno e A Forma da Água, constrói um clima envolvente para qualquer trama e não é diferente com o novo filme estrelado por Bradley Cooper. Mas nem toda ilusão é perfeita e O Beco do Pesadelo deixa de lado alguns “truques” que tinha na manga.
A história começa nos apresentando ao aparentemente decadente Stanton (Bradley Cooper), personagem enigmático que, em uma também aparente fuga, se depara com um circo itinerante. Por lá, conhece figuras tão misteriosas e peculiares quanto ele e, com elas, aprende a “arte” da ilusão - uma ferramente que, mais a frente, usará a seu favor de suas diversas formas.
Ambicioso e tomado pela obsessão por controle, Stanton se torna um vigarista inescrupuloso, determinado a convencer a elite nova-iorquina de seus poderes mediúnicos - e enriquecer com um charlatanismo quase infalível. Mas ele não é o único especialista em “decifrar a mente” e seu caminho começa a ruir quando conhece a psicóloga Lilith Ritter (Cate Blanchett).
O maravilhoso circo dos horrores de Guillermo del Toro
Os monstros criados por Guillermo del Toro, cuja habilidade para tal é inquestionável, são meios lúdicos para falar sobre conflitos e características humanas e, em O Beco do Pesadelo, o cineasta mexicano parece ir mais diretamente ao ponto nesse quesito. Não existem criaturas fantásticas no longa, mas as pessoas aqui agem como se fossem - e talvez assustem ainda mais ao mostrar a facilidade para manipular uma realidade que já é terrível.
Na ficção, poucos ambientes facilitam a criação de horrores mais do que um circo, ambiente intenso e estimulante em sua própria natureza e que pode ser ainda mais com a inclusão de personagens e de uma atmosfera difíceis de decifrar. Del Toro traz o cinema noir para criar um clima melancólico que convida ao mistério e à investigação. O grande trunfo aqui é colocar a história num ponto exato que deixa o espectador ciente de que muito do que acontece ali não passa de uma farsa, mas ainda em dúvida do que há de sobrenatural - o elemento principal da história de Stanton dentro de seu mundo.
É neste sentido que a indicação de O Beco do Pesadelo aos prêmios de Melhor Fotografia, Melhor Direção de Arte e Melhor Figurino fazem completo sentido: temos quadros e cenas esteticamente inventivos, provocantes e encantadores um após o outro - ainda que falte uma conexão mais envolvente entre eles.
Qual é o tema de O Beco do Pesadelo?
O terreno para suspenses psicológicos que mergulham na mente humana é fértil e O Beco do Pesadelo trás um viés excelente: até onde nos deixamos ir e no que escolhemos acreditar na busca pela sensação de controle. O mundo do charlatanismo abordado por aqui é magnético e revoltante porque nos mostra não só quais são os caminhos dos vigaristas para fisgar suas vítimas, mas as consequências tenebrosas.
Fingindo ter poderes mediúnicos, Stanton surge na vida de seus clientes como um oráculo capaz oferecer um conforto através de respostas mentirosas, mas satisfatórias. É ótima a narrativa de como a sensação de controle é um vício e se torna uma dependência quase química. Quanto mais “informações mágicas” ele dá, mais fundo seus clientes querem ir, mais respostas exigem e mais frequência desejam.
Nesse sentido, o balanço entre o golpista e a psicóloga femme fatale coloca lado a lado os caminhos para a mente humana. Stanton satisfaz seu público com argumentos genéricos e respostas rasas cujas lacunas são preenchidas por quem está ouvindo - em poucas palavras: o charlatão diz o que o cliente quer ouvir e o deixa completar o que falta com os desejos que já estão em sua mente. Alívio simples e imediato para qualquer angústia.
O trabalho da terapeuta em “decifrar a mente”, por outro lado, faz um caminho muito mais complexo, demorado e doloroso. Lilith não tem resposta alguma para nenhum mistério, mas acompanha seus pacientes nessa busca que envolve, acima de tudo, frustração de expectativas. Um caminho cortado pela superficialidade de Stanton, que, embora consiga capturar a mente de outras pessoas, não consegue escapar disso.
Personagens de O Beco do Pesadelo caminham devagar
Além de Bradley Cooper e Cate Blanchett, O Beco do Pesadelo tem um elenco de estrelas de Hollywood que inclui Toni Collette, Willem Dafoe e Rooney Mara - todos nomes cujo potencial já foi assistido diversas vezes. A sensação, então, é de que o texto de seus personagens não os ajuda a ir tão fundo quanto sabemos que poderiam: é como se a proposta fosse nos apresentar figuras com muitas camadas e labirintos internos, mas faltou expor melhor suas características.
Cooper interpreta um protagonista com o qual é difícil se conectar porque está sempre à beira de nos deixar entrar em sua mente, mas nunca o faz. “Frio e calculista”, Stanton cai em armadilhas um tanto simplórias e não aprende tanto quanto quer fazer parecer - talvez um traço de seu charlatanismo e superficialidade, mas que poderia ser um pouco mais desenvolvido. Esta construção respinga na personagem de Cate Blanchett: a psicóloga é soturna e ardilosa, mas seus feitos perdem um pouco do impacto porque Stanton não reage a eles de forma contundente.
Com isso, a sensação é de que há partes muito interessantes da história rolando com os coadjuvantes e a vontade é de saber mais sobre eles, conhecer melhor o circo do horrores em que vivem. Stanton e Lilith usam de seu carisma, poder de convencimento e manipulação para sobreviver, mas leva um tempo para que nos deixemos envolver por eles.
O Beco do Pesadelo coloca no tabuleiro uma variedade ótima de temas profundamente humanos, complexos e assustadores, que vão do desejo inconsciente de sermos iludidos ao pavor de perder o controle das situações (e tudo o que se faz para evitar o problema). Assim como as cartas da clarividente Zeena (Toni Collette), Del Toro também nos deixa muitos espaços para preencher com nossas próprias expectativas e torna seu filme um show que divide opiniões - mas que vale a pena ser visto.