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    Maria do Caritó
    Críticas AdoroCinema
    2,0
    Fraco
    Maria do Caritó

    Os sonhos da virgem

    por Bruno Carmelo

    Maria do Caritó (Lília Cabral) está prestes a comemorar cinquenta anos, mas nunca fez sexo. Esta é a principal característica apresentada sobre a protagonista, que sonha com o dia em que finalmente encontrará um homem para amar e apagar o “fogo debaixo da saia”. Enquanto isso, ela transpira demais à noite, reza para todos os santos e se converte em santa para a população local, por ter preservado a virgindade durante tanto tempo. A questão da liberdade individual em oposição ao controle social domina esta comédia popular dotada de um único conflito. Todos os personagens existem para Maria, em função dela: o pai vive para vigiar sua castidade, o político e o padre querem se beneficiar de sua aparente pureza, o circo quer aproveitar o caráter de aberração, a melhor amiga aparece à janela para buscar um partido a Maria.

    Nunca saberemos se Maria já se apaixonou, se flertou com homens no passado, e por que as tentativas passadas teriam dado errado. O humor nasce apenas desta configuração enxergada como uma anomalia exótica: a mulher madura sem vida sexual, ou ainda a mulher que não consegue um homem. Pela construção da cidadezinha povoada por gente religiosa e ignorante, poderíamos nos imaginar numa construção caricatural do “Brasil profundo”, no entanto a utilização de canções contemporâneas (o “pout-pourri do amor” de Maria) e as referências a Jair Bolsonaro, personificado pelo Coronel (Leopoldo Pacheco), insistem que a história se passa nos dias atuais. Assim, a configuração da comédia caipira soa bastante deslocada. A passividade de Maria e dos moradores locais se torna menos uma homenagem ao imaginário da natureza pura (do humano e da paisagem) do que uma construção preconceituosa do sertanejo como figura essencialmente tola, sem distinções.

    No entanto, o aspecto que mais chama a atenção não é o discurso sobre a ingenuidade, e sim as escolhas estéticas. Adaptado de uma peça de teatro, Maria do Caritó enfrenta dificuldades para se adequar ao cinema. O diretor João Paulo Jabur aposta nos planos aéreos da paisagem com drones para dar a impressão de amplitude, no entanto se restringe à utilização destes espaços enquanto cenários. Afinal, a trama é condicionada pela imobilidade de Maria, presa à sua casa e ao vilarejo, e mesmo os fatores externos (a chegada do circo) vêm até a protagonista sem que ela precise se deslocar. Como de costume em comédias populares, a ação se move quase integralmente através de diálogos, nos quais os personagens dizem o que pensam, o que pretendem fazer, revelam descobertas etc. Para preservar o aspecto fabular, a equipe mantém a direção de fotografia assumidamente artificial, a direção de arte aposta na casa de paredes multicoloridas, além da inserção do circo sem distinção real do espaço da cidade. De modo geral, todo o vilarejo de Maria de encontra sobre um picadeiro.

    Em tese, o humor poderia se assemelhar às leituras paródicas do sertão em O Auto da Compadecida (2000) e Lisbela e o Prisioneiro (2003). No entanto, ao contrário do ritmo veloz das imagens e dos diálogos mordazes das comédias de Guel Arraes, o filme de 2019 teima em encontrar um ritmo cômico para as ações, talvez por serem limitadas aos mesmos espaços e ao único conflito da virgindade. Lília Cabral, atriz de muitos recursos cênicos, efetua uma composição que nem extravasa o cômico, nem busca o realismo dramático, provocando um meio-termo curioso entre ambos (vide o sotaque vacilante entre o interiorano e os tons das capitais do Sudeste). As interações entre Maria e o Galã do circo (Gustavo Vaz), ou ainda com a amiga Fininha (Kelzy Ecard) deveriam sugerir certa malícia (afinal, esta é uma comédia inteiramente focada no desejo sexual), mas a filmagem contemplativa, de planos abertos com Maria caminhando pela cidade, preserva uma placidez prejudicial ao gênero escolhido.

    Rumo ao final, a intenção de trazer reviravoltas à trama soa tão absurda quanto mal trabalhada. As motivações do padre, do coronel e mesmo da dona do circo (Juliana Carneiro da Cunha) são pouco verossímeis, mesmo dentro do universo fabular. O filme busca resgatar a pureza da figura do caipira nas comédias brasileiras de quase setenta anos atrás, porém sem refletir sobre as transformações do cinema, da sociedade e do humor. Não é possível reproduzir um estilo sem buscar qualquer forma de atualização, sob risco de soar anacrônico, desconectado da realidade. Mazzaropi não existiria como tal hoje em dia, os Trapalhões não poderiam trazer reproduzir as mesmas tiradas em 2019. Homenageá-los não pode se limitar a copiá-los, ou apenas resgatar, de modo nostálgico, aqueles bons tempos que não voltam mais. Um filme contemporâneo sobre um tempo antigo não pode se confundir com um filme antigo.

    Filme visto no 29º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em agosto de 2019. 

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