Racismo, gentrificação, violência policial, lugar de fala, criminalização das minorias e muitos outros temas de alta complexidade e que ainda necessitam de muitos debates são trazidos por esse filme surpreendente, apresentados ao público também em forma de música e poesia. Uma obra que se aproveita da arte em tudo de melhor que ela pode nos oferecer.
Trata-se de uma narrativa que nos faz mergulhar em uma sociedade fundamentada na coexistência de privilégios para uns e ausência de direitos para outros, resultando em drásticas consequências e conflitos. O caso é que todos nós já pertencemos a esse “mundo” trazido pelos roteiristas e estrelas do filme, Daveed Diggs e Rafael Casal. Eu faço parte e você também. Não se trata de uma visão fictícia e/ou restrita a Oakland, Califórinia, é uma história universal, contemporânea e sempre indispensável.
Qualquer comentário a esse filme não poderia se limitar à sua grandeza estética e criativa, que ao unir o profundo realismo dos temas tratados com o artifício e beleza da poesia declamada, e até cantada pelos personagens, sem nos tirar em momento algum da riqueza e seriedade de sua história, nos entrega uma obra a ser recordada e festejada. Para entender a qualidade do filme é preciso voltar-se também para aquilo que nos é contado e como isto nos faz rever tudo que já pensamos conhecer sobre o mundo que nos cerca.
Um termo que define o personagem Collin Hoskins, e o clima do filme, é dito logo no começo do longa por seu supervisor de liberdade condicional: “Você é um criminoso condenado, Sr. Hoskins. Você é “isso” até que prove o contrário. Prove o contrário a todo momento. ” Essa frase no contexto do filme parece ter mais significado do que o estigma permanente do ex-presidiário que ele terá que carregar, parece também descrever o preconceito constante que ambos, homens negros em uma região considerada como Gueto, devem lidar a vida toda. Essa minha conclusão já toca imediatamente em outro tema discutido no filme: o lugar de fala e a apropriação cultural.
Não seria eu mesmo parte da parcela chamada nos EUA de “Culture Vultures” (apropriadores de cultura), uma vez que sou branco, de uma realidade totalmente diferente e consumidor das diversas formas de arte de origem cultural negra (especialmente a música, pintura, dança e vestimenta)? Até onde eu posso comentar sobre um preconceito ou exploração que nunca conhecerei? A empatia é suficiente para que minha palavra seja relevante nessa situação? Questões que não são de fácil resposta e que o filme também não tenta ser definitivo em responder, mas deixa claro sua indignação em uma fala poderosa sobre a violência policial: “Vou dizer (sobre o abuso da polícia) através do Rap, porque todos se condicionaram a só ouvir o negro quando ele está cantando Rap! ”. Cena tão poderosa e impactante que se assemelha à mensagem do clipe “This is America” do rapper Childish Gambino, sobre a valorização somente da arte e não da vida e dignidade da população negra.
Envolvido nessas perguntas que surgem ao longo do filme temos o personagem de Rafael Casal, um jovem branco que nasceu nessa cidade, majoritariamente habitada por uma população negra segregada e marginalizada por um racismo estrutural e bancado pela violência e opressão dos poderes constituídos (manutenção do status quo acima de tudo). Fica claro que ele teve que lutar por seu espaço e pela criação de uma “persona” que exale força e assertividade para não ser lembrado constantemente de sua etnia. Uma busca por uma masculinidade ligada a agressividade na aparência e no comportamento para esconder seu medo de ser excluído por ser uma minoria dentro de outra minoria. Seu “eu” falso, externo, se sente em um perigo cada vez maior ao começar a ocorrer o processo de Gentrificação de sua cidade, onde mais brancos como ele começam a aparecer como moradores (Exemplo desse processo pode ser visto também no Rio de Janeiro, vide declaração do prefeito Crivella em visita à Rocinha: https://www.youtube.com/watch?v=7VGIdkBVxck).
Em um processo natural humano de existência precedendo essência (Jean-Paul Sartre), Miles absorveu e atribuiu sentido ao mundo que se apresentou a ele desde sua infância, ele vê o seu direito de pertencimento conquistado com muita luta ser abalado quando Hippsters, em sua maioria brancos de classe média/alta, começam a se mudar para sua cidade em um processo de elitização da população em detrimento dos antigos moradores que não mais conseguem manter os gastos com sua moradia. Ao perceber o perigo de ser visto como um desses “invasores” ele é confrontado com seus privilégios étnicos e toda sua construção de personalidade é posta em questão.
Esse é um filme que merece mais de uma visita e um talvez até um livro todo dedicado à sua história, construção, relevância social, produção e valor artístico. Mas, correndo o risco de nunca dissecar o suficiente essa obra, concluo dizendo que este com certeza é um dos melhores filmes do ano e será centro de muitos estudos e análises no futuro. Uma combinação de mensagem, arte, sentimento e reflexão que não deve ser ignorada por qualquer um que aprecie de filmes.
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