Terra de machos
por Bruno CarmeloPoucos filmes conseguem ilustrar o imaginário tradicional de virilidade como Cano Serrado. Os personagens principais são homens, é claro, mas também são policiais, militares, jagunços, malandros. Cada um ostenta pelo menos uma arma na mão, e ao primeiro sinal de perigo, disparam aos quatro cantos. Eles dirigem grandes caminhonetes em toda velocidade pela terra batida, enquanto enchem a boca para soltar dois ou três palavrões por frase. Entre os seus dilemas, hesitam entre se ater à bela esposa religiosa, que fica aguardando o marido chegar em casa, ou ir à forra com prostitutas que se insinuam ao primeiro olhar, deixando o carro com “cheiro de foda”, algo ostentado orgulhosamente um policial (Paulo Miklos).
Neste território sem leis, os desejos dos homens não têm limites e as desavenças são acertadas na base da força. Voltamos a uma espécie de darwinismo social, ou lei do mais forte, como preferir. O cenário desolador corresponde a uma versão do Brasil contemporâneo, onde o policial Luca (Jonathan Haagensen) sofre uma emboscada dos militares locais, liderados pelo sargento Sebastião (Rubens Caribé). Mesmo com uma ferida absurdamente grande na perna, tendo perdido litros de sangue, ele resiste diante dos militares que o torturam de diversas formas. O roteiro constrói pouco mais do que um faroeste brasileiro, com diferentes brutamontes medindo forças até o esperado duelo final em que as gangues opostas se encontram numa planície, ao pôr do sol, para ver quem atira primeiro.
A representação exagera tanto nas tintas que beira a comédia. No entanto, o diretor Erik de Castro trata a história com uma seriedade sepulcral, aplicando outras ferramentas do cinema-macho: a trilha sonora rock que não para jamais, a montagem tentando imprimir dinamismo a qualquer preço (ainda que, para isso, precise “cropar” a imagem, com estranhíssimos cortes dentro de um mesmo enquadramento), planos-sequência truncados e um inexplicável fetiche por planos aéreos, sem falar na tortura filmada em plano aberto para transmitir que o ator realmente passou por aquela experiência brutal. Pobre Haagensen, que não apenas precisa tratar a ferida gigantesca como algo realista, mas também suporta a tortura à brasileira. Como se isso não fosse o bastante, o roteiro inclui metáforas óbvias como uma barata entrando na tal ferida – sim, este machucado ocupa um lugar central na história -, a filha de um torturador ministrando aulas de moral e ética e grandes cobras atravessando a estrada.
Aos atores, cabe buscar alguma forma de verossimilhança a estes tipos malvados. Nomes talentosos como Milhem Cortaz e Sílvia Lourenço são desperdiçados em papéis pequenos, embora se destaquem pela tentativa de atenuar os histrionismo dos personagens. Caribé abraça a vilania com gosto, articulando cada “por-ra” ou “fo-da-se” com os olhos brilhando de prazer. A direção, empolgada com seus G.I. Joes nacionais, não demonstra distanciamento em relação à violência, ou ainda à representação submissa da mulher – mesmo a única mulher policial, vejam só, é descrita como uma aluna que sucumbiu ao charme do professor.
Em se tratando de temas controversos como a violação de direitos humanos e a justiça com as próprias mãos, imprimir um estética tão imersiva, buscando um prazer irreflexivo e visceral, corresponde à adesão destas ideias. Cano Serrado não é apenas um filme policial, ou uma incursão nacional nas regras do cinema de gênero. Ele também é um produto que compactua com a violência retratada, delicia-se com seu espetáculo sangrento, aderindo à masculinidade tóxica que, especialmente no Brasil de 2018, mereceria o mínimo de senso crítico.
Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.