O homem sem qualidades
por Bruno CarmeloCerto dia, Georges (Jean Dujardin) observa o próprio casaco de veludo no reflexo do carro. Ele passa a detestar o tecido. Corre até o banheiro, arranca a peça de roupa e a joga na privada num gesto de desespero. Então, o alívio. Georges respira de novo. Na cena seguinte, paga um preço exorbitante por uma jaqueta de camurça de segunda mão. Agora ele é um homem novo. O diretor Quentin Dupieux filma estas cenas como se o protagonista estivesse cometendo um assassinato brutal, e depois adquirisse uma nova identidade para fugir à polícia. O projeto começa apresentando cenas banais no estilo de um crime para, em seguida, retratar crimes reais com aparência de banalidade.
A jaqueta de camurça, personagem principal deste filme, nunca é apenas uma peça de vestuário. O cineasta sempre demonstrou o prazer pelas comédias absurdas, seja humanizando objetos (o pneu assassino de Rubber), seja conferindo importância desproporcional a fatos corriqueiros (a acusação infundada em Au Poste!). Desta vez, ele propõe uma síntese dessas abordagens, personalizando a camurça enquanto transforma uma mentira (o falso filme que Georges afirma estar preparando) num projeto de consequências fatais. O humor se encontra na subversão das proporções e do tom, investindo no ridículo deste suspense crescente sobre um homem obcecado pela nova jaqueta.
O recurso poderia soar superficial, porém Dupieux impressiona pelo refinamento de sua abordagem. Primeiro, a roupa se torna um excelente símbolo para descrever a personalidade deste homem mitômano, sem dinheiro, abandonado pela esposa e sem profissão. A jaqueta se transforma num elemento de controle, uma vida nova que constrói a si mesmo, uma maneira de fugir instantaneamente à dor do abandono representada pela blusa anterior. Seria simplório considerar Georges um louco qualquer: ele corresponde à figura do macho abandonado, sem qualidades profissionais ou morais, e dependente do status e da imagem para se construir enquanto indivíduo. Talvez por isso ele pratique com tamanha facilidade uma série de assassinatos comandados pela persona da jaqueta: Georges não se importa com ninguém, tampouco nutre sentimentos por suas vítimas.
Ao mesmo tempo, a jaqueta se torna um objeto de culto e de erotismo: o único momento de tensão sexual ocorre ao encostar a pele na camurça que aos poucos toma conta de sua mente e seu corpo (cobrindo os pés, a cabeça, as pernas). Quando uma mulher oferece seu corpo ao homem solitário, e outra jovem solitária aparenta estar disponível, Georges ignora o apelo: apenas a obsessão o move. É interessantíssimo o modo como Dupieux filma a humanização do casaco em paralelo com a objetificação do protagonista. Nas conversas entre ambos, inicialmente vemos o protagonista criando a voz fantasma da jaqueta, até os enquadramentos tirarem Georges de cena e a voz emanar diretamente do tecido, em off. Em paralelo, quanto mais camurça coloca em seu corpo, mais frágil o protagonista se torna.
Deerskin desenvolve, através de pouquíssimos personagens e uma atmosfera de fábula infantil, um curioso jogo de poderes. Quem controla quem, entre Georges e a jaqueta? Quando Denise (Adèle Haenel) entra na equação, fornecendo dinheiro para o suposto filme do amigo, quem se tornará o verdadeiro diretor? Nesta história sangrenta sobre a busca desesperada de dois solitários por um sentido na vida, o roteiro consegue fazer com que a jaqueta, no final, se sobreponha a todos. Mesmo quando parece não se desenvolver, o roteiro encontra uma maneira de unir as histórias paralelas da roupa e do filme-dentro-do-filme, atando todas as pontas soltas (a vizinha pela janela, o garoto silencioso) de modo catártico e plenamente funcional em termos narrativos.
Por trás da brincadeira de aparência inconsequente, o diretor demonstra um domínio estético e narrativo precioso, além de refinar um gesto autoral que vem construindo desde as primeiras obras. Cada silêncio, cada enquadramento levemente fluido constrói uma espécie de humor improvável, que nasce da linguagem cinematográfica ao invés de piadas fáceis ou diálogos espirituosos. Por trás das risadas nervosas ou do aceno à loucura existe uma angústia existencial que une perfeitamente o humor ao terror.
Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.