Explicar o que significa conviver com alguém em algum relacionamento é algo que nunca foi fácil de explicar. Você pode dizer, falar de outras maneiras o que sente ou deixou de sentir, gesticular – enfim, fazer tudo em termos de comunicação, mas jamais o outro entenderá a dor que você está sentindo ou sentiu. Podemos nos colocar no lugar do outro, obviamente – mas, mesmo assim, não saberemos a exata sensação – ou seja, cada relacionamento, cada convivência é algo único para seus participantes – algo tão profundo que às vezes somente a arte consegue nos consolar – música, cultura, filmes – ou pelo menos remediar ou refletir sobre a dor de romper algo que significa uma união – uma união que, direta ou indiretamente, faz parte da pessoa – errado ou não, o individuo que está conosco é uma parte nossa – ou, pelo menos, essa é a sensação.
O mestre Ingmar Bergman expressou essa dor no clássico Cenas de Um Casamento de 1973 – e, agora, é a vez de Hollywood dar sua “versão”, digamos assim. Escrito e dirigido pelo promissor Noam Baumbach (de Os Meyerowitz), História de Um Casamento conta como foi o processo de separação do casal Nicole (Johansson) e Charlie (Driver) – ela uma atriz e ele diretor de teatro, sempre trabalhando juntos nos palcos de Nova York – mais do que mostrar um desgaste na relação, o filme nos passa exatamente o que cada um sente pelo outro – em meio as diferenças e as afinidades, além do cuidado para não machucar o filho Henry (Robertson), de 10 anos. Tentando não levar a separação para os tribunais a principio, Nicole acaba decidindo pedir a ajuda da famosa advogada Nora Fanshaw (Dern) – o que faz com que Charlie precise de outro – na figura do advogado Bert Spitz (Alda). Durante um processo doloroso, tanto Nicole quanto Charlie refletem sobre as coisas boas e ruins que tiveram durante o tempo de casados.
Poderíamos pensar, logo de inicio, que Baumbach abusaria de recursos óbvios – como tolos flashbacks para ilustrar os “dias de glória” do casal – mas não: o foco aqui é se concentrar em como o processo do divórcio realmente corrói as almas dos dois protagonistas – o que significa que a câmera do cineasta está disposta a deixar os dois atuarem quase que livremente – para ser mais preciso, livremente para poderem expressar o máximo possível de toda a mágoa e sentimento de sufocamento pelo doloroso processo – abrindo o filme com a leitura de uma carta que cada um fez para o outro, a pedido de um mediador (que tenta de um jeito bastante ingênuo tentar segurar o casamento), o diretor já deixa bem claro que a sinceridade dos dois para um com o outro é autêntica – por mais defeitos que tenham, eles se perdoam – a amizade e a cumplicidade estão sempre ali juntas – mas há defeitos que não podem ser escondidos e esquecidos.
Tudo isso parece simplório de se falar, mas com o potencial de atuação de Scarlett Johansson e Adam Driver tudo se torna realmente sublime e real – é impossível não se emocionar junto Nicole no momento em que a advogada de Laura Dern simplesmente lhe pergunta se ela está bem – o choro da atriz é tão real que fica claro como se entrega a personagem – da mesma forma que Driver é autêntico e profundo quando finalmente “estoura” e diz coisas horríveis e se arrepende em seguida de um jeito tão frágil que acaba sendo assustador e ao mesmo tempo tocante – como disse, a câmera e os enquadramentos de Baumbach estão ali para deixar os dois fluírem suas interpretações – o que faz com que todos os sub temas de História de Um Casamento funcionem perfeitamente.
Através da Nicole de Scarlett fica claro o sentimento de ter sido relegada como apenas “o apoio” de seu marido – seja no trabalho, em casa ou na criação do filho – afetando, inclusive até mesmo suas oportunidades de subir na carreira como atriz – algo que o britânico A Esposa (com Glenn Close) também tinha abordado, mas de uma maneira um pouco mais “novelesca” – aqui, o realismo impressiona – afinal, mesmo tendo sentido essa repressão (indiretamente) do marido, Nicole não o odeia ou o demoniza – essa abordagem ajuda Adam Driver a compor seu Charlie como um homem falho, mas que está longe de ser um monstro – o que deixa o filme livre de qualquer clichê de “bonzinho versus malvado” na relação amorosa – inclusive a abordagem de Baumbach é versátil o suficiente para não querer “ditar” sentimentos para o espectador, que pode sentir a sua maneira as cenas – algo que se estende para a sútil trilha-sonora de Randy Newman, aparecendo em momentos adequados, sem forçar sensações melancólicas com seus acordes e tons.
Nicole e Charlie acabam sendo reflexos perfeitos da realidade – mas não são pessoas do tipo que poderiam se dizer “tóxicas” – apenas são humanos errantes – e apaixonados – mas, como sempre dizem por aí, um relacionamento não vive somente de amor – embora eu não seja casado – e creio que quem já teve qualquer tipo de relacionamento amoroso conseguirá se identificar com o longa – sabemos que construir uma vida juntos na mundo atual é algo complicado – criar filhos, conduzir a carreira sendo mãe/pai não é algo que nem imaginando seria simples – e o roteiro é preciso em inserir a Nora de Laura Dern – a ótima atriz (como sempre) serve como um alicerce para Nicole – e o momento em que ensaiam o que devem dizer na frente do juiz mostra bem como a vida das mulheres é muito mais complicada que a dos homens diante de aceitação na sociedade – “para eles, você tem que ser perfeita” – diz Nora, já que do contrário, qualquer defeito, poderia diminui-la ou dar a aparente sensação que não é apta a ter a guarda do filho – ao passo que, na cena em que é visitado por uma assistente social, Charlie não tem nem noções básicas de como arrumar os móveis da casa ou de brincar mais naturalmente com o filho – o pequeno acidente com a faca no final da cena mostra como ele é um homem que precisa fingir muitas coisas para demonstrar ser o que não é, de fato – embora queira realmente a guarda do filho – algo que justifica ele perder a paciência durante o processo, quando nota que o advogado de bom coração Bert do veterano Alan Alda não seria o suficiente para o vencer o caso – precisando do linha dura Jay (na composição perfeitamente arrogante de Ray Liotta) – algo que entra até em contraste com o otimismo em ainda achar que a relação dos dois teria como continuar por parte da mãe de Nicole, vivida de forma muito simpática pela já veterana Julie Hagerty (a Elaine de Apertem os Cintos, O Piloto Sumiu).
Em tempos de muita “plasticidade” e relações descartáveis em nossas vidas, assistir um filme tão verdadeiro quanto História de Um Casamento é um presente maravilhoso – o mais próximo que a arte nos leva a entender o que realmente significa desapegar de coisas (e pessoas) que fazem parte do nosso dia a dia – mesmo que, no fundo, não seja exatamente o que desejamos.