Os terríveis atentados terroristas que os EUA sofreram no fatídico dia 11 de setembro de 2001 que destruíram por completo as torres gêmeas do World Trade Center e uma parte do Pentágono (sede das forças armadas) mudaram para sempre o país - assim como o resto do mundo. Uma dessas mudanças foi o modo como o governo estadunidense, através de seu serviço secreto, a CIA, decidiu proteger o seu povo de novos ataques usando métodos reprováveis, desprovidos de qualquer tipo de ética. Essa é a premissa da qual parte O Relatório.
Daniel Jones (Adam Driver, de O Último Jedi) trabalha como assistente no gabinete da senadora do Partido Democrata (PD) Danielle Feinstein (Annete Bening, de Os Imorais) e é incumbido por ela de conduzir uma investigação sobre a destruição de fitas de vídeo de interrogatórios da CIA, o serviço secreto dos EUA, com suspeitos de terrorismo.
As investigações de Daniel o levam ao programa de detenção e interrogatório da CIA, criado após os atentados de 11/09/2001, acusado de usar tortura para interrogar os suspeitos. É formada uma comissão de investigação sob a liderança de Daniel com a participação de membros do Partido Republicano (PR) para aprofundar as investigações.
Apesar do PR - e até mesmo alguns membros do PD - abandonar o caso, da má vontade do chefe da CIA, John Brennan (Ted Levine, de O Silencio dos Inocentes) e da atitude evasiva do Chefe de Gabinete do governo, Denis McDonough (Jon Hamm, da série Mad Men: Inventando Verdades), Daniel prossegue seu trabalho para descobrir toda a verdade.
O Relatório é um filme que segue a linha de denúncia e investigação política tais como nos clássicos Z (1968, de Costa-Gavras), JFK - A Pergunta que Não Quer Calar (1991, de Oliver Stone) e Todos os Homens do Presidente (1976, de Alan J. Pakula) e, como tal, há muita intriga, mistério e sabotagens no desenrolar
A medida que assistimos O Relatório e acompanhamos todos os passos de Daniel Jones em sua busca incansável e, não raro, obsessiva por respostas do por quê seu país utilizou a tortura como método de interrogatório, pois não cola a justificativa de "proteger os EUA de futuros ataques", vemos, chocados, que para esses homens e mulheres da CIA, basta um mal para justificar outro - as cenas de tortura são bem realistas e revoltantes - como se, para exorcizar um demônio, fosse preciso utilizar meios satânicos. Os seres humanos mostram seu pior lado e sem nenhum arrependimento ou crise de consciência.
Para mim, uma das cenas mais assustadoras d' O Relatório é quando o advogado do governo de George W. Bush, John Yoo (interpretado por Pun Bandhu, de O Jogo do Dinheiro), que, de um modo muito calmo, frio e cínico, justifica a tortura por uma interpretação extremamente distorcida da Convenção de Genebra, que estabeleceu normas internacionais para o tratamento de prisioneiros de guerra. Uma cena parecida com a de outro filme que trata da administração Bush (mais especificamente do vice-presidente Dick Chaney), Vice (2018).
Chama a atenção as citações ao ex-administrador de sistemas da CIA, Edward Snowden, famoso por ter revelado ao mundo a espionagem estadunidense em todos os modos e níveis e as comparações feitas - direta ou indiretamente - com Daniel. Snowden é um herói para uns e um traidor para outros. E para Daniel Jones? Embora não diga abertamente, dá para perceber que, para ele, traidor Snowden não é, mas, ao mesmo tempo ele não quer ser obrigado a sair do país para não ser preso tal como seu conterrâneo.
O Relatório também mostra cenas bastante familiares aos brasileiros. A primeira, é o uso de escutas telefônicas (conhecidas como "arapongas"), que não poupa nem o senado estadunidense. A segunda, é a de que "o presidente não sabia de nada" (ah, tá). E a terceira, é o uso de censura antes de divulgar informações, algo que, infelizmente, volta a ser cada vez mais comum nesta era das trevas pela qual o Brasil passa atualmente.
O Relatório é apenas o terceiro trabalho de direção do produtor e roteirista Scott Z. Burns - Os dois primeiros foram o filme PU-239 (2006) e um episódio da série Californication (2007). Burns mostra-se bastante competente na função mantendo o público atento e interessado durante todo o desenrolar da trama. Essa competência também pode ser vista na direção do elenco.
Adam Driver é mesmo o ator-sensação do momento. Tem uma ótima performance, digna de uma indicação ao Oscar, assim como em seu outro trabalho História de Um Casamento (em breve, faremos a crítica desse filme). Adam interpreta o herói honesto, obcecado em fazer justiça, o tipo com o qual o espectador identifica-se mesmo que, por vezes, use meios pouco comuns - o que acaba por gerar uma contradição, visto que o objeto de sua investigação é justamente os de meios incomuns de agir do governo dos EUA. Pena que, caso seja indicado, irá bater de frente com aquele que é considerado o grande favorito ao prêmio, Joaquin Phoenix, por Coringa.
A performance de Annete Bening é igualmente ótima, tendo sido indicada ao prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante no Globo de Ouro de 2020 (que costuma ser chamado de prévia do Oscar). Sua personagem transmite seriedade e bom senso, mas é dura para determinados assuntos como por exemplo, quando diz o que pensa de Edward Snowden. Annete tem grandes chances de conquistar o prêmio, embora vá enfrentar um forte concorrência como, por exemplo Kathy Bates (em Richard Jewell) e Jennifer Lopez (As Golpistas). Se for indicada ao Oscar, o que é bem provável, será a quinta vez que concorrerá ao prêmio maior do cinema estadunidense, mas novamente terá forte concorrência.
O Relatório é um filme que chega na hora certa. Com a ascensão de governos e partidos fascistas e/ou de extrema-direita em várias partes do mundo, que tem em sua "ideologia" a retórica de "bandido bom é bandido morto", terraplanismo em pleno século XXI, fundamentalismo religioso de igrejas e seitas neopentecostais, tortura como meio e fim para alcançar suas metas, intolerância e ódio infinitos, O Relatório mostra que o jeito certo de fazer-se justiça - com civilidade, mas também com firmeza e seriedade - funciona e deve ser um guia para uma era mais luminosa que acabe com a era das trevas na qual vivemos hoje.