Crimes de guerra
por Francisco RussoNão é de hoje que a popularidade das séries têm influenciado o cinema, especialmente em relação à linguagem. O exemplo mais notório nos últimos anos foi dado por 24 Horas, onde o ritmo ágil das desventuras de Jack Bauer serviu de inspiração para a popular franquia Jason Bourne, estrelada por Matt Damon - sem falar que os métodos usados pelo personagem de Kiefer Sutherland se encaixavam muito bem com a realidade pós-11 de setembro. O Relatório é mais um filme a lidar com tal inspiração, mas com um resultado bem distante do pretendido devido ao próprio material que havia em mãos.
Baseado em uma história real, O Relatório apresenta a extenuante saga enfrentada pelo agente Daniel J. Jones para pesquisar e elaborar um imenso documento, com mais de 700 páginas, acerca das acusações do uso de tortura pela CIA, em interrogatórios feitos com supostas ameaças aos Estados Unidos. Mais que propriamente criticar o ato em si, o que o filme até faz, o objetivo aqui é narrar toda esta jornada, do início ao fim, de forma didática e minuciosa. É como se fosse também outro relatório, cinematográfico, sobre o ocorrido.
Com um conteúdo imenso em mãos e tendo a consciência do quão pouco palatável ele é ao grande público, o diretor estreante Scott Z. Burns decidiu recorrer à sua experiência como roteirista de O Ultimato Bourne e, tal como boa parte das séries policiais da atualidade, resolveu dar agilidade à narrativa através de certos truques: muita câmera na mão, corte de todo e qualquer tempo de respiro entre os personagens, trilha sonora que capricha no suspense, um tom urgente na fala e muita, mas muita frase de efeito. Tudo com o objetivo de transmitir tensão, de forma que o espectador não se canse de tantos detalhes. Não funciona.
Não funciona porque este conteúdo necessita de um maior desenvolvimento, para que possa enfim provocar alguma reflexão. Da forma como Burns constrói sua narrativa, tudo se resume à urgência de momento sem que seja sequer dado tempo para identificar e conhecer seus muitos coadjuvantes, tão necessários nesta jornada de quase uma década. Mais ainda: o filme não abrange apenas o vasto tema da tortura, mas também a falta de interesse do próprio governo em revelar suas mazelas e ainda a possibilidade de vazamento de informações confidenciais, em nome de um bem maior. São todos temas extensos, profundos, que surgem aqui e ali como se fossem meros itens em uma lista qualquer. Em nome de uma suposta agilidade, que não vem muito graças à artificialidade de tal proposta e as inúmeras (e muitas vezes desnecessárias) idas e vindas na linha temporal, o filme é apequenado de uma forma impressionante - e assustadora, ao se analisar os reflexos disto dentro de uma indústria cinematográfica cada vez menos interessada em temas sérios.
Diante de tal problema conceitual, resta pouco ao filme. Se Adam Driver até tem uma atuação digna, personificando o investigador destemido que dedica a vida a uma causa, Annette Benning entrega uma personagem caricata e rasa, que pouco entrega além de caras e bocas burocráticas. Soma-se a isso o fato de que O Relatório leva mais da metade de sua duração para enfim chegar na história que deseja contar, escancarada logo na sequência inicial.
Curiosamente, O Relatório é mais um filme que vem se juntar a uma seara de produções de fundo político, que vieram à tona nos últimos anos. O conteúdo aqui exibido dialoga diretamente com Vice, A Hora Mais Escura - citado nominalmente neste longa-metragem, inclusive -, Caminho para Guantanamo e Fantasmas de Abu Ghraib, como se todos formassem um imenso mosaico cinematográfico sobre este período tão específico da história dos Estados Unidos - e, por que não?, mundial também. Como se pode perceber, assunto é o que (ainda) não falta.
Verborrágico ao extremo e tecnicamente correto, O Relatório apresenta e descarta potencialidades com uma facilidade impressionante, além de ter uma imensa dificuldade em estabelecer conexões entre os personagens além do factual. Uma pena, pois com o material que tinha em mãos havia o potencial de algo bem mais substancial e instigante junto ao público, talvez se fosse escolhido um recorte ao invés de retratar toda a jornada enfrentada.
Filme visto no Festival de Toronto, em setembro de 2019.