Suspense à moda antiga
por Bruno CarmeloUm homem viaja de Londres à Índia. Depois pega um táxi, sai do táxi, aluga um carro, dirige o veículo durante dias. Ele para, compra uma arma, compra um lanche, dorme num hotel, treina tiros à beira da estrada, dirige mais um pouco, avista uma mulher, faz perguntas, volta ao hotel, retorna ao encontro da mulher. O Convidado se apresenta como um curioso filme de procedimentos. O diretor e roteirista Michael Winterbottom sabe que poderia pular a maioria dessas etapas num simples corte de montagem e “ir ao que interessa”. No entanto, é isso que desperta a atenção o cineasta: a suspensão das explicações, o desenvolvimento ao vivo de um plano cuja origem e objetivo o público desconhece.
Neste sentido, temos um projeto bastante clássico em mãos no qual, ao invés de apresentar o personagem para então lançá-lo numa aventura, aposta-se na capacidade de dedução do personagem durante a aventura. Quem é Jay (Dev Patel)? Por que carrega uma arma? Quem é a mulher que ele sequestra durante uma festa de noivado? O roteiro se desenvolve como um intrigante, ainda que discreto, jogo de adivinhações: o que aparentava ser um sequestro violento, no início, se transforma em resgate quando o espectador descobre que a noiva, Samira (Radhika Apte), estava prestes a enfrentar um casamento forçado. A cada parte da trama, somos convidados a reinterpretar as cenas: então Jay na verdade é um homem bom? Ou apenas uma figura impiedosa que efetua o resgate por causa do dinheiro que receberá? O que Samira esconde?
Por embutir a tensão na própria construção dos personagens, O Convidado não precisa introduzir reviravoltas improváveis, cenas de perseguição com explosões e tiroteios, ou ainda embates finais entre vilões e bandidos na intenção de surpreender o espectador. Primeiro, porque não há vilões e bandidos no sentido estrito do termo: o trio de personagens composto por Jay, Samira e o mandatário do crime, Deepesh (Jim Sarbh) manipula uns aos outros durante toda a trama para benefício próprio. Por isso, o desenlace soa inesperado, ainda que verossímil. Segundo, porque é difícil compreender quem efetivamente tem o controle da situação: ora Jay parece dar as cartas, apenas para ser surpreendido por Deepesh, e depois ter que se render às decisões inesperadas de Samira. O foco se encontra menos no espetáculo do que na sugestão de que estas figuras estão prestes a se matar a qualquer momento.
Michael Winterbottom, diretor de trajetória variada e irregular, aposta num projeto “à moda antiga”, de uma época pré-espetáculo, digamos. Partindo de uma premissa com forte potencial ao apelo dos sentidos (com terroristas, sequestradores, mulheres em perigo, pedras preciosas, identidades falsas), ele decide se concentrar apenas nos dilemas dos personagens, enquanto ignora o mundo ao redor. Esqueça as forças policiais, a família chorosa dela ou o passado traumático dele: neste road movie de pura exterioridade, o espectador descobre apenas aquilo que os personagens vivem, o que justifica a composição bastante crua de Dev Patel, e também as interessantes transformações propostas por Apte, ora silenciosa, ora agressiva e maliciosa. Apesar de tantas idas e vindas por cidades, hotéis e restaurantes, a estrutura funciona como um huis clos entre três inimigos inseparáveis.
Devido a esta configuração particular, O Convidado despertou muitas reações adversas do público e da mídia. Parte da crítica o considerou frio demais, e talvez não esteja equivocada nesta colocação. No entanto, esta frieza o distingue de tantas produções do gênero, por apostar na capacidade do público em seguir personagens que não conhece, torcer por figuras de índole ambígua, adivinhar caminhos que Winterbottom tem prazer em sabotar. Somos convidados a seguir a narrativa de modo ativo, participativo. O diretor controla muito bem o tom, elaborando imagens elegantes sem chamarem muita atenção a si mesmas, enquanto confere uma atenção considerável aos espaços e à descrição orgânica das culturas indiana e paquistanesa.
Além disso, é interessante descobrir Dev Patel finalmente interpretando o estrangeiro em solo indiano: depois de tantos filmes na figura do oriental ingênuo, ele tem a capacidade de demonstrar uma astúcia e uma gravidade dos gestos nunca antes vista. Por fim, no complicado xadrez envolvendo o trio central, o diretor sabe muito bem do lado de quem deve ficar (vide a bela imagem final), sabotando as expectativas fáceis de romance ou de final feliz. Os manuais de roteiro costumam dizer que a boa conclusão é aquela que soa totalmente surpreendente, ainda que inevitável: o espectador precisa ter a sensação de que a história não poderia se concluir de outra maneira. É o caso deste suspense refinado e minimalista, que infelizmente não passou pelas salas de cinema no Brasil.