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    Pescadores de Corpos
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Pescadores de Corpos

    À margem da crise de refugiados

    por Bruno Carmelo

    Embora este documentário se construa a partir de um importante tema político e social, seu elemento de maior destaque é de ordem estética. O filme italiano apresenta algumas das mais belas imagens vistas no cinema recente, incluindo documentário e ficção. O diretor Michele Pennetta se posiciona dentro de barcos de pesca e barcos de resgate, trabalhando com maestria ímpar as luzes escuras da noite, o contraste entre as sombras e as luzes frias de lanternas. A nitidez dos objetos, o recorte da luz nos corpos é espetacular.

    Os enquadramentos fixos, meticulosamente estudados, permitem retratar a vida de um imigrante sírio, vivendo escondido em uma embarcação abandonada enquanto espera a validação do estatuto de refugiado. O cineasta capta a transformação do local em casa: mesmo sem luz elétrica, o jovem consegue preparar as suas refeições, tomar banho, estender as roupas molhadas para secarem. Enquanto isso, pescadores reais e atravessadores de imigrantes ilegais passam seus dias esperando alguma ação, neste caso, alguma oportunidade de trabalho, e portanto de maior renda.

    Pescadores de Corpos se concentra essencialmente na espera, às margens da crise de refugiados. Enquanto a maioria dos filmes sobre o tema (Fogo no Mar, Human Flow) investiga a travessia em si, destacando os perigos e os instantes de resgate, o projeto italiano desloca o centro de atenção, fazendo com que as partes representem o todo. Fiscais dos mares sicilianos comunicam-se no rádio, falando sobre a travessia de refugiados ocorrendo naquele exato momento em algum ponto distante, mas a câmera permanece no escuro, junto da embarcação que não participa do ato. O homem sírio discute ao telefone sobre a documentação negada pelo governo italiano, porém não acompanhamos o processo burocrático.

    A câmera deste documentário também está, de certo modo, ilegal, escondida. Pennetta busca reproduzir o sentimento de cativeiro e abandono. Longe da impressão de aventura empolgante, prefere traçar a crônica da ansiedade solitária, da dificuldade de se comunicar ou levar uma vida com os plenos direitos de um cidadão. Enquanto isso, a montagem compara a situação grave dos sírios com aquela degradante dos ajudantes que passam os dias a esperá-los. Eles formam uma mesma cadeia de precariedade. O filme se posiciona a favor dos menos privilegiados, ainda que observe no cômodo ao lado, de modo quase invisível.

    Pescadores de Corpos evita qualquer forma de didatismo: não existe uma única cartela, legenda, depoimento dado à câmera ou demais recursos informativos. O espectador pode demorar a descobrir, por conta própria, quem são os homens representados, o que fazem em suas respectivas embarcações. Talvez o resultado seja lacônico demais, esforçando-se para ocultar relações de causa e consequência que poderiam beneficiar a compreensão, mas talvez tornar o resultado mais convencional. De qualquer modo, o cineasta deixa claro que a preocupação social não descarta a busca pela construção estética. Ele consegue aliar as duas intenções no projeto belíssimo que, embora não se aprofunde nas discussões políticas, impregna as imagens de um humanismo poético.

    Filme visto na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2017.

     

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