Logo em sua primeira cena, Judy: Muito Além do Arco-Íris já deixa bem claro o que está tentando mostrar sobre sua protagonista: diante de uma tela escura, ouvimos o chefe e criador da Metro Goldwin Mayer, Louis B. Mayer (Cordery) dizendo a ainda pequena Judy Garland (Shaw) – “o que você vê atrás desta parede?” – para em seguida dar um conselho/sermão sobre as vantagens que a moça de 16 anos teria na vida se optasse por se sacrificar durante as filmagens de um dos maiores clássicos da era de ouro de Hollywood, O Mágico de Oz – se negasse, ela jamais veria o seu “lugar sobre o arco-íris” de uma das músicas mais famosas da história, cantada pela própria jovem – mesmo sendo algo de 1939, não deixa de ser uma oportunidade de mostrar como a indústria do cinema tem a capacidade de dar uma mão para ajudar e, com a outra, prejudicar – o que muitos chamariam apenas de “o preço do sucesso”, para Judy Garland lhe custou todo seu psicológico, autoestima e dependência em remédios para controlar seu sono e depressão.
Mesmo a fase adolescente e de inicio de carreira não sendo o foco principal desta produção britânica dirigida pelo estreante em longa-metragens Rupert Goold, essa passagem é uma tradução perfeita de como uma das atrizes mais famosas do cinema não conseguiu levar o brilho que exalava em palcos e telas para sua vida particular – se nos cinemas ela foi a queridinha da américa do fim dos anos 30 até meados dos anos 50 – desde seus filmes juvenis em parceria com o então adolescente Mickey Rooney, passando pela sua Dorothy em Oz, seus musicais nos anos 40, ao lado de atores como Gene Kelly e Fred Astaire, e sua performance indicada ao Oscar na versão de 1954 de Nasce Uma Estrela, a vida de Judy (Zellweger) foi turbulenta – quatro casamentos e quatro divórcios, tentativas de suicídio, e problemas financeiros, que atrapalhavam a criação de dois de seus três filhos (Ramsey e Lewin Lloyd) – o uso de vários medicamentos também era o escape da pressão que vivia com os trabalhos que se envolvia nos filmes, palcos e TV.
A partir disso, o longa conta a história da atriz e cantora durante o final de sua carreira e vida, no inverno de 1968 – onde, para poder pagar as contas e continuar com a guarda dos filhos, ela se vê obrigada a aceitar uma longa turnê de shows musicais em Londres, deixando suas duas crianças com o ex-marido Sid (Gambom) nos Estados Unidos – sua dependência em pílulas e bebidas alcóolicas vão tornando difícil sua relação com os organizadores dos shows.
Tanto o diretor quanto o roteirista Tom Edge (baseado em uma biografia feita para um musical de teatro, escrito por Peter Quilter) acabam se dando bem em mesclar poucos flashbacks do inicio da carreira da artista – eles acabam sendo bem funcionais, para entendermos a baixa auto estima de Judy – ela tinha uma obsessão em parecer mais bonita do que diziam, já que Mayer e outros produtores da época falavam que ela não era tão bonita quanto outras atrizes jovens, como Shirley Temple. Ainda há a boa (mesmo que rápida) participação da atriz Darci Shaw como a jovem Judy – transparecendo o comportamento de descobertas junto de uma revolta contra as imposições do estúdio – ao contrário de hoje em dia, naquela época os atores ficavam “presos” por contratos por um único estúdio apenas – e, evidentemente, isso nos leva ao ponto máximo do filme: Renée Zellweger.
O curioso é que Renée passou por algo quase parecido com o que Judy viveu: criticas maldosas por estar acima do peso – algo que chegou até mesmo a atrapalhar sua carreira durante a última década – mas Zellweger dá, realmente, a volta por cima, por compor com uma precisão e imersão uma personagem realmente complexa – é digno de aplausos a forma como expõe a insegurança de Judy – como quando dá meios sorrisos, ou mantem a cabeça sempre abaixada e a coluna encurvada – demonstrando perfeitamente a falta de autoestima da atriz e cantora – e, falando em canto, ela realmente surpreende em expor seu talento em realmente cantar todas as músicas – cada canção é interpretada de maneira visceral e realmente muito parecida com Garland – mostrando que seu Globo de Ouro e indicação ao Oscar são mais do que merecidos.
O diretor também toma decisões acertadas em mostrar o impacto que o trabalho de Judy tem sobre as pessoas – isso fica bem representado quando o casal homossexual vivido por Andy Nyman e Daniel Cerqueira se deixa usar da arte da cantora para aliviar o preconceito que sofrem pelas suas orientações sexuais – da mesma maneira que uma parte de seu público não perdoa suas falhas – como quando ela vai se apresentar embriagada – o roteiro também deixa bem claro que o machismo que a sociedade exala sempre atrapalha a carreira das mulheres, ao exigirem que elas sejam exemplos de “super mães sem defeitos”, mesmo que, exatamente no caso de Judy, seus problemas venham quase que todos das pressões que homens lhe impuseram – a cena onde ela é entrevistada por um arrogante apresentador de TV mostra isso – sem falar que o chefe da Metro Goldwin Mayer sempre é mostrado em angulações vindas de baixo para cima, para dar uma impressão de dominante – é curioso constatar que, mesmo sendo um sujeito extremamente exigente, o estúdio que criou sofre até hoje com diversas dividas, mudando de donos de tempos em tempos.
Mas, lamentavelmente, a trama sofre com o desenvolvimento rasteiro dos demais personagens em torno de Judy – como disse antes, o filme não é focado na vida toda dela, mas fica claro como sua relação com o ex-marido Sid do Michael Gambom é algo superficialmente mostrado – para não dizer desnecessário quase, ao tomar tempo de tela em diálogos pouco inspirados – com um objetivo de tentar comover pelo pouco tempo que a atriz tem para estar junto dos filhos menores – inclusive, sua filha mais velha, a também atriz e cantora Liza Minnelli (papel de Gemma-Leah Devereux) aparece também de forma abrupta – creio que pelo fato de que a Liza real desaprovou a criação do filme – e, enquanto que é bacana ver como Judy se sente desconfortável com a relação com a produtora dos shows (da Rosalyn Wilder), por se lembrar de como era tratada na MGM, torna-se irritante ver a composição limitada de Finn Wittrock como o novo namorado de Garland – colocando seu personagem em uma função de vilão, sem necessidade.
Mas já tecnicamente, Judy se mostra muito bom, com um design de produção preciso, em recriar com fidelidade palcos de shows e os sets antigos dos anos 30 e 40 – a breve recriação do set de O Mágico de Oz e de uma piscina onde Garland faz um ato de rebeldia são concebidas pela produção com autenticidade, para dar a impressão de ser da época mesmo – da mesma forma que a fotografia de Bratt Birkeland é muito criativa em dar uma impressão de cores parecida com o antigo technicolor dos musicais clássicos de Hollywood quando Judy está feliz nos palcos – e, quando se encontra no seu quarto, por exemplo, sempre demonstrando uma paleta azul, mais fria, exprimindo melancolia. Sem falar que os figurinos e maquiagem retratam perfeitamente a personagem de Zellweger – mesmo que a atriz tenha emagrecido bastante para o papel, a forma como ela é maquiada e penteada tornam sua caracterização muito parecida com a Judy real.
Entre erros e acertos, o longa ainda consegue se mostrar tocante quando exprime a necessidade de Judy em se sentir amada por seu público – a cena final com “Somewhere over the Rainbow” só não é mais emocionante por uma tentativa pífia do diretor em parafrasear uma citação de O Mágico de Oz, que faz parecer que o legado de Judy Garland ficou limitado apenas a sua Dorothy – quando, na realidade, ela foi uma mulher a frente de seu tempo, corajosa por tentar fugir da hipocrisia e crueldade da indústria artística – tendo feito muito mais do que um trabalho importante – talvez sua luta contra a depressão seja algo realmente difícil de ser retratado em um filme de apenas duas horas com falhas estruturais na concepção de seu novato diretor.
Judy Garland, mesmo injustiçada e prejudicada pela indústria, jamais deixou falhas em seus trabalhos – e, ao contrario dela, os realizadores desta cinebiografia não sofreram tantas pressões assim para que as limitações deste longa sejam justificadas – mas, ainda assim, o que prevalece ao fim é o amor que está mulher propagou em meio a tudo.