As variações de uma lenda
por Barbara DemerovEm Macbeth, o australiano Justin Kurzel abraçou com força todo o cuidado estético, seja visual ou sonoro, para contar uma história épica sobre guerra e amor. Em A Verdadeira História da Gangue de Ned Kelly, o diretor tira um pouco desta intensidade para construir uma narrativa nos mesmos moldes que a vista no filme com Michael Fassbender, mas ao mesmo tempo abrindo um caminho menos onírico e um tanto mais bucólico, partindo do início até chegar ao fim da vida do fora-da-lei. A humanidade que encontramos no protagonista, interpretado por George MacKay na fase jovem adulta, não se dá através de sua personalidade em si, mas sim através das pessoas que o cercam em diferentes etapas de sua vida.
Esta é uma maneira bem interessante de moldar a essência de uma figura como Ned Kelly, mas Kurzel parece querer justificar o tempo todo as ações que o homem fez ao longo da vida. Vemos Kelly se tornar o "pai" de família ainda enquanto criança, matando animais e protegendo a mãe e seus irmãos, assim como vemos sua mãe (Essie Davis) vendê-lo a Harry Power (Russell Crowe), homem foragido e perigoso, sob o pretexto de dar uma educação rígida e a visão de mundo mais ampliada, fazendo-o amadurecer. O arco da infância/adolescência é desenvolvido no primeiro ato com equilíbrio notável do diretor ao evidenciar todas as dificuldades vividas por aquela família - especialmente com a presença constante do sargento O'Neill (Charlie Hunnam) em sua residência, o que gera o primeiro sentimento de vingança de Ned.
Mas é apenas no período adulto que o protagonista colhe os frutos de todas as emoções amarguradas que plantou ao longo de uma infância difícil e tão 8 ou 80. Seu caráter é praticamente descomedido de boas intenções, tendo sempre algo escondido mentalmente quando é a hora de agir com amigos e inimigos - e que nem espectador é capaz de identificar prontamente. Sua famosa armadura de ferro, que usa para se proteger dos policiais, pode ser vista como a representação de como ele se sente perante ao mundo: protegido e isolado.
Kurzel constrói e desconstrói Kelly já no início, quando os letreiros que abrem o filme afirmam que nada do que o público verá em seguida é verdade. Tal abordagem é proposital e bem colocada, pois dá bastante liberdade tanto para o autor trabalhar a lenda da forma como bem entender, quanto para quem assiste tirar suas próprias conclusões. Se nada do que nos é exposto pode ser real, o misticismo que ronda Kelly se torna ainda mais forte.
É aliado ao mistério e ação da narrativa que a pretensão do diretor em entregar um filme dinâmico no sentido visual, e protocolar no sentido criativo, funciona. Se o público se enjoou dos planos em câmera lenta de Macbeth, em A Verdadeira História da Gangue de Ned Kelly há certa dosagem dos momentos épicos - e quando eles acontecem, com uma trilha-sonora perfeitamente bem inserida, conseguem atingir o ponto emocional além daquele que envolve a violência.
Em determinada cena, quando um policial (Nicholas Hoult) ameaça a vida de um bebê para tentar ferir uma pessoa próxima de Ned, é quando podemos ver o DNA de Kurzel: a crueza dentro desta história repleta de fontes históricas, com autonomia para ser interpretada da maneira que o espectador bem entender, também abriga a possibilidade de vermos heróis como vilões - e vice-versa. O Ned Kelly de MacKay consegue transitar dentro destas facetas, concedendo humanidade a um símbolo.
Filme visto durante a 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2019.