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    O Traidor
    Críticas AdoroCinema
    2,5
    Regular
    O Traidor

    Máfia, melhores momentos

    por Bruno Carmelo

    Por que o cinema é tão fascinado com a representação da máfia? Seria pelo ideal de virilidade representado por estes homens que dormem com quantas mulheres quiserem, embora valorizem a família e a religião acima de tudo? Seria pelo ideal de luxo representado pelos casarões, festas, carros, drogas e armas à vontade? Ou pela vazão da violência inconsequente, já que os personagens podem matar quem quiserem ser serem perturbados? Ou talvez pelo (anti-)heroísmo associado à vida curta, porém intensa, repleta de prazeres e longe das regras sociais? O cinema norte-americano e italiano, em especial, tem retratado sob o viés da idealização estes criminosos fundamentalmente contraditórios, foras-da-lei que respeitam cegamente os códigos de honra de seus grupos.

    O Traidor se abre com uma pressa voraz de abraçar todo o imaginário de sangue, sexo e dinheiro ligado à máfia. A montagem empilha cadáveres e romances sem que o espectador tenha tempo de descobrir quem está matando e quem está morrendo, por que razão tal filho é considerado uma desgraça à família ou por que outro é tão temido em seu círculo social. O roteiro, dividido em três atos, utiliza a parte inicial para condensar tudo aquilo que a maioria das produções do gênero exploraria ao longo de um filme inteiro. Talvez por isso o segmento inicial, o mais fraco, soe novelesco com tantas lágrimas e gritos, com sua trilha sonora exagerada e suas repetidas paisagens do Pão de Açúcar. A produção se preocupa em multiplicar os cenários, os figurantes e as pessoas que atravessam a vida de Tommaso Buscetta (Pierfrancesco Favino), mafioso que aceita colaborar com a polícia e denunciar o esquema do Cosa Nostra, que levou à prisão de centenas de criminosos em seu país.

    O maior problema do filme se encontra no roteiro, satisfeito em enumerar as passagens mais marcantes da vida de Tommaso sem construir o antes e o depois, ou ainda o contexto permitindo o desenvolvimento das ações. O diretor Marco Bellocchio trabalha a cinebiografia em modo Wikipédia, listando nomes e datas na tela, saltando de um julgamento a uma investigação, de uma cidade onde mora Tommaso à outra, onde é forçado a se exilar. Este é um filme de ação no sentido estrito do termo, por privilegiar as reviravoltas e os momentos de intensidade. Ora, quando tudo é intenso, nada o é: as cenas climáticas precisariam de instantes de inflexão para se tornarem realmente potentes, mas a narrativa prefere mergulhar no imaginário folclórico da vida de exceção. Ele passa dos tiroteios às trocas verbais nos tribunais enquanto ignora a vida cotidiana entre eles.

    Consequentemente, conhecemos pouco sobre os personagens principais, apesar das quase 2h30 de duração. Por se concentrar no pós-máfia, ou seja, no momento em que o esquema se desmantela e as principais ações já foram cometidas, quase não vemos Tommaso cometer qualquer ato que justifique sua posição dentro do Cosa Nostra. A esposa brasileira (Maria Fernanda Cândido) limita-se à função conjugal, aparecendo marginalmente nas cenas, cuidando dos filhos e da saúde do marido. Enquanto isso, os adversários incriminados pelo protagonista tornam-se uma massa indistinta de mafiosos. Percebe-se, pelos letreiros e pela conclusão, que os nomes foram preservados e todas aquelas pessoas de fato existiram. No entanto, elas soam perfeitamente intercambiáveis. Bellocchio se apropria de um caso particular dentro da máfia para criar um filme de máfia impessoal, por se concentrar mais no fetiche do crime do que no aspecto psicológico capaz de distinguir o protagonista dos demais. Enquanto o cinema se encantar com estes homens malvados e suas armas potentes, ele não deixará de soar condescendente com a violência que supostamente critica.

    Pelo menos, o filme melhora quando permite a entrada de humor, constatando o absurdo dos julgamentos e a transparência com que estes homens confessam os seus assassinatos. A entrada de diálogos sobre a honra dos réus, que sequer se consideram ladrões, poderia constituir um bom ponto de reflexão caso o projeto estivesse disposto a dar um passo atrás e observar este cenário com um olhar crítico. O Traidor sequer aproveita a possibilidade de estabelecer uma ponte com a corrupção e violência contemporâneas na Itália. Ao menos, oferece algumas boas atuações e permite assistir a produção de proporções impressionantes, como raramente se vê no cinema feito fora da grande indústria.

    Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.

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