Elogio da inocência
por Bruno Carmelo“Dedicado ao auteur Abbas Kiarostami”. A ficção indiana se abre com uma homenagem ao recém-falecido cineasta iraniano, mas a surpresa diz respeito ao termo utilizado: “auteur”, em francês, usado na função de pronome de tratamento, como se o público precisasse de um lembrete retórico da importância do criador de Gosto de Cereja. Kiarostami volta a ser citado duas vezes na história, uma na capa de um livro, outra na explicação de um personagem, dizendo a uma criança que ele foi um “cineasta excepcional”.
Tamanha reverência se encontra em Caminhando com o Vento, produção que tenta se apropriar das virtudes do realismo iraniano. A premissa, em linhas gerais, poderia fazer parte de um filme do cineasta persa: um garoto de baixa renda atravessa 14km na Cordilheira do Himalaia diariamente para ir à escola e voltar para casa. Quando acidentalmente quebra a cadeira de um colega, faz uma peregrinação atrás de alguém que conserte o móvel antes de ser descoberto.
Entretanto, as semelhanças com Kiarostami param por aí. O indiano Praveen Morchhale aprecia demais a simplicidade do garoto para perceber que, por trás de sua história, se esconde uma precária situação familiar e uma vida marcada por falta de oportunidades e de recursos básicos. Existe, no olhar do diretor, a condescendência paternalista que enxerga nas pessoas pobres uma nobreza de espírito - julgamento típico de quem observa este universo de fora.
Assim, acompanhamos Tsering num road movie, cruzando com figuras concebidas para reforçar sua ingenuidade: o jovem oferece ajuda a um motociclista com pane no veículo, imaginando que seu burrinho sirva para puxar a moto quebrada, depois pede auxílio a um grupo de artistas no outro lado da montanha, ou ainda procura pela vaca perdida de um camponês em troca do conserto da cadeira. Como é linda a alma singela da criança, se sacrificando pela simples causa do conserto de uma cadeira! Ou, por outro lado, como é triste ver o evento representar um risco - material, emocional - tão grave na vida de Tsering.
Morchhale filma suas cenas à distância, valorizando a inserção dos personagens nos espaços, explorando as casas vazias, as grandes montanhas sem vegetação, os pequenos riachos. O fetiche da paisagem é canalizado na figura da pintora anônima, numa gag recorrente no filme: a tal artista, de costas, aparece filmando o garoto por vários cenários em que passa. A ausência de interesse sociológico da personagem é a mesma do cineasta, para quem a figura de uma criança correndo por todos os lados representa, acima de tudo, uma boa oportunidade para a composição dos enquadramentos.
Caminhando com o Vento consegue, nesta trajetória, demonstrar diversos elementos importantes da cultura indiana das montanhas, muito diferente daquela das grandes cidades. O roteiro inclui, de modo relativamente orgânico, comentários sobre o plantio das terras, os rituais religiosos e a importância do turismo. No entanto, este mundo é observado com o interesse plácido de um turista, que avista uma cultura distante, fotografa-a em seu melhor ângulo e depois passa a outra coisa, sem jamais compreender as pessoas gravadas em suas imagens, nem dar voz às mesmas.