Meu pequeno nazista
por Francisco RussoÉ possível fazer piada em cima de temas sérios, como a Segunda Guerra Mundial? Com Jojo Rabbit, Taika Waititi mostra que sim, desde que haja toda uma preparação especial de forma que o exibido em cena soe deslocado da realidade de fato. Guardadas as devidas proporções, e em outro gênero, é mais ou menos o que fez Quentin Tarantino quando subverteu o decorrer da História em Bastardos Inglórios.
A abertura de Jojo Rabbit é essencial para se entender e abraçar a insólita proposta de Taika: a partir de um garoto de 10 anos (Roman Griffin Davis, bem), defensor ferrenho do nazismo e que tem Adolph Hitler como amigo imaginário, somos apresentados à uma cidade tipicamente alemã durante a Segunda Guerra Mundial, com direito a cartazes com a suástica espalhados por todos os cantos. Convocado para um fim de semana de treinamento em um acampamento, Jojo está pronto para virar um homem. Lá, deve aprender a queimar livros e matar judeus, como "todo bom pequeno nazista" - palavras do filme, é bom ressaltar.
Se o que você acaba de ler lhe provoca calafrios, saiba que o grande diferencial é como esta realidade é apresentada. E a saída encontrada por Taika é através do escracho absoluto, a começar pelo próprio diretor travestido como um Hitler pra lá de exagerado e hilário, vociferando absurdos típicos de sua ideologia sempre em tom histérico. Funciona, e muito bem.
Diante de tal conjuntura, é impossível levar algo a sério. Intencionalmente, Taika eleva o exagero à estratosfera para construir um delicioso tom farsesco que resulta numa das sequências de abertura mais criativas e inusitadas dos últimos anos, através do qual se cria um paralelo entre o nazismo e a histeria no encontro de ícones da cultura pop, tudo ao som de Beatles. O exibido é tão absurdo que a partir de então o filme ganha um salvo-conduto para fazer e dizer o que quiser - e ele faz! Muito da beleza de Jojo Rabbit vem justamente da coragem de seu diretor e roteirista em tocar em temas espinhosos de forma não a defendê-lo, mas a criticá-lo com força. Como resultado, provoca boas gargalhadas, seja pela qualidade do texto ou mesmo por não acreditar no que está vendo diante de si.
Infelizmente, Jojo Rabbit não consegue manter o nível por toda sua duração. Após um primeiro ato brilhante, de um politicamente incorreto saboroso, o ritmo acalma para que novos personagens entrem em cena. É hora de conhecermos a mãe interpretada por Scarlett Johansson, cujo lado lúdico serve de respiro em meio à opressão reinante, por mais que reconheça (e respeite) a posição política do filho, como seguidor de Hitler. Esta, por sinal, é uma das maiores mensagens enviadas pelo roteiro: o convívio das diferenças, seja através de mãe e filho ou mesmo quando aparece Elsa (Thomasin McKenzie, correta), a judia escondida no sótão da casa, no melhor estilo Anne Frank. Seu convívio com Jojo é de uma riqueza imensa, seja pela denúncia dos preconceitos ou mesmo pela profusão de mentiras alardeadas, ambas impulsionadas pela ignorância e má-fé. Taika, indiretamente, está na verdade fazendo uma analogia aos tão conflituosos dias atuais e às fake news.
Por mais que se mantenha relevante e divertido até os momentos finais, muito graças ao brilho de coadjuvantes como Sam Rockwell, Rebel Wilson e o garoto Archie Yates, Jojo Rabbit sofre uma certa acomodação em sua metade final, decorrente das transformações na mentalidade de Jojo que resultam, também, em participações cada vez mais esporádicas de Taika como Hitler. Como narrativa, trata-se de uma construção absolutamente compreensível, por mais que deixe uma ponta de decepção pela excelência do exibido anteriormente.
Com um elenco afiado que encampa sem medo o absurdo exagerado da narrativa, Jojo Rabbit é um filme bastante divertido que, mais uma vez, reafirma o talento de Taika Waititi como criador e até contestador, no sentido de buscar fórmulas pouco usuais de contar uma história - é dele também o ótimo O Que Fazemos nas Sombras. Um filme para ver, rir muito e também refletir. A comédia, muitas vezes, é um ótimo meio de se questionar o status quo.
Filme visto no Festival de Toronto, em setembro de 2019.