Compra-se técnica cinematográfica
por Taiani MendesXéu (João Pedro Zappa, pouco convincente como favelado) tem uma moto e uma namorada grávida, Lidiane (Mariana Cortines). Desempregado, é pressionado por ela a vender o veículo e busca encontrar um comprador e um novo emprego ao mesmo tempo em que tenta afastar o primo do vício em cocaína. O parente malandro, chamado Cadu (Vinicius de Oliveira, ótimo), além de não querer largar o hedonismo ainda gosta secretamente de Lidiane, com quem se envolveu no passado, o que gera certa tensão na família.
O mito da câmera na mão e ideia na cabeça faz mais uma vítima. Estreando em longa-metragem ficcional, o diretor teatral, ativista social e escritor Marcus Faustini registra propostas alternativas de discurso e honestas cenas do cotidiano periférico em Vende-se Esta Moto, que se vale de poesia, exploração da cidade e enaltecimento da vida na favela para teoricamente contar uma história de amor e posse que tem como pano de fundo um passeio por diferentes regiões do Rio de Janeiro. O resultado é mal dirigido e montado, incongruente ao conter dispendiosas tomadas aéreas ao lado de sequências simples de enquadramento fixo sem atenção à composição, desleixadas e registradas de maneira amadora. Há o flerte com a estética do precário e a aspiração ao visual padrãozinho, indecisão que acaba deixando a obra à margem dos dois estilos, inconsistente.
Fosse contada de forma simples e direta, talvez a história do “casar ou comprar bicicleta” funcionasse em comunhão com a teia de relacionamentos, que revela frescor contemporâneo ao envolver ainda o caso de Lidiane com a colega de trabalho de Xéu – também por ele desejada. Do jeito retalhado que é apresentada, no entanto, soa infinitamente mais desinteressante do que as breves aventuras do protagonista pela capital fluminense. As duas tramas deveriam avançar juntas e se complementarem, mas tal união jamais é alcançada e o filme soa perdido e desconexo mesmo com os esforços narrativos do punk poeta interpretado com energia por Silvio Guindane. “O fardo da vida é o amor”, ele repete ao longo da trama aberta por Italo Calvino: "Jamais se deve confundir a cidade com o discurso que a descreve".
Quando se aproxima de uma adaptação de seu elogiado livro (transformado em peça) Guia Afetivo da Periferia, Faustini cria os melhores momentos de Vende-se Esta Moto. VLT, van, moto, ônibus, “viação canela”; Piscinão de Ramos; Aterro do Flamengo; Centro; Batan; Maré; praia que não é Copacabana; Lapa afastada dos Arcos. O olhar de descoberta de Xéu pela falta de intimidade com certas zonas privilegiadas da própria cidade em que vive é a aguardada e necessária resposta aos abastados que até hoje atravessam o túnel para fazer turismo com curiosidade e medo.
Apesar da ausência de aprofundamento das conexões, os personagens são genuínos e raras vezes a sétima arte nacional capturou tão perfeitamente a essência da rotina do morador classe C de comunidade carente, do pão com mortadela na mochila ao incômodo quando alguém de outra favela fala que a sua está braba. Os retratados circulam pelas vielas sem cruzar com traficantes ou policiais e som de tiro não há nesta antítese meio utópica do ultrapassado gênero favela movie – que sempre foi orientado por forasteiros.
Vende-se Esta Moto debruça-se sobre um riquíssimo e reconhecível Rio de Janeiro ainda pouco enfocado no cinema de longa-metragem, de dentro, com conhecimento de causa e carinho. O filme, no entanto, não é capaz de conquistar mais do que o carimbo da autenticidade por decisões equivocadas (como a escalação de Zappa no papel principal) e deficiente domínio do fazer cinematográfico, com roteiro desestruturado e falhas inclusive de continuidade e captação de áudio.
Filme visto no 10º Festival CineMúsica, em novembro de 2017.