"Só" palavras
por Taiani MendesNo ano em que completaria 100 anos, o aclamado escritor e jornalista Antônio Callado ganha de presente uma homenagem assinada por Emilia Silveira (Setenta, Galeria F). Callado é um ensaio laudatório executado com bom gosto que resume a vida do autor registrando paralelamente a variação e o aprofundamento de suas reflexões a respeito da Terra Brasilis, oscilantes entre a confiança e a desesperança.
Ex-presa política e realizadora dedicada a contar histórias pouco disseminadas relacionadas à ditatura militar, Emilia estabelece a conexão da biografia com seu tema de estudo abrindo o documentário com a participação de Callado no “Os Oito do Glória”, protesto esvaziado em 1965 que levou à prisão, além dele, Carlos Heitor Cony, Thiago de Mello, Jaime de Azevedo Rodrigues, Flavio Rangel, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Mário Carneiro. Subentende-se desde já que o engajamento é fundamental. A faceta de Callado que interessa ao filme é a de pensador que coloca no papel sua interpretação do país e tem a obra guiada pela corajosa busca de respostas para suas inquietações acerca da identidade nacional. Esse viés não impede, no entanto, que o longa-metragem ofereça também um retrato intimista do niteroiense, entrando em sua vida pessoal – em especial os amores e uma dura perda familiar detalhada sem necessidade – e se valendo principalmente de comentários, várias vezes bem-humorados, do próprio protagonista.
Com exceção de dois momentos aleatórios em que grupo composto por poetas, professores e intelectuais discute a literatura de Callado, e um trecho de Masculino, Feminino, o filme tem o autor como única pessoa mostrada em movimento. Os depoimentos de terceiros são apenas áudio e até as imagens de arquivo exclusivamente retratam Antônio. Suas frases estampam a tela em tamanho grande, dando ao longa-metragem um encantador aspecto de livro eventualmente ilustrado (os rostos dos entrevistados revelados no fim, como a foto de escritor na orelha da publicação, são um charme extra). Tratando-se de um documentário sobre um literato e jornalista, sua maior riqueza, o texto, não poderia ficar em segundo plano ou ser apenas ouvido enfrentando a concorrência do visual. As letras brancas e vermelhas (apesar dele negar ser comunista) no fundo preto não dão ao espectador escapatória a não ser absorver e ser absorvido pela língua portuguesa, não há como se distrair do discurso. As palavras vivem e, mesmo Callado tendo falecido há duas décadas, são bastante atuais.
O foco no ativismo político e nos romances abre brechas para as experiências internacionais como jornalista de guerra e até uma breve menção à investigação do desaparecimento de Percy Harrison Fawcett – cujas expedições foram dramatizadas recentemente em Z - A Cidade Perdida –, mas estranhamente seu trabalho como dramaturgo especialmente interessado em protagonistas negros é ignorado, como se enfrentar o racismo não fosse parte importante da militância.
Iniciados em Quarup (1967), Bar Don Juan (1971) e Reflexos do Baile (1976), seus clássicos, podem acessar camadas mais profundas, porém mesmo quem nunca se aproximou de nada dele ou sequer ouviu falar consegue compreender minimamente o cerne de sua obra nos 80 minutos de Callado, muito bem montados. Basta querer ler. O tom é mais sóbrio e menos didático do que A Paixão Segundo Callado, de José Joffily, no entanto não deixa de parecer um exagero dois documentários, ainda que pouco semelhantes em formato, sobre o mesmo personagem em dez anos.
Filme visto no II Festival Imperial de Cinema de Petrópolis, em outubro de 2017.