Em busca da identidade
por Renato FurtadoA bifurcação e o frio da manhã, que acaba de começar, quase abalam a confiança de Laís (Lara Boldorini), em sua bicicleta, carregando consigo a única coisa que sobrou de seu pai, um anônimo a quem a mãe se refere apenas como "o falecido": uma foto do homem, com o rosto rasgado da imagem, carregando a jovem protagonista de Sobre Rodas, então apenas um bebê, nos braços. Mas sua determinação é restaurada com a chegada de seu improvável companheiro de viagem: o amigo Lucas (Cauã Martins), um menino que perdeu o movimento das pernas após um acidente, em sua engenhosa cadeira de rodas motorizada.
Fazendo jus à essência road movie de seu roteiro, o diretor Mauro D'Addio explora esta inesperada aventura com um interesse muito maior na jornada em si do que em seu objetivo. Aprendiz dos melhores filmes deste subgênero, que no Brasil é representado por dramas como Central do Brasil e Cinema, Aspirinas e Urubus, o cineasta injeta fôlego em uma estrutura narrativa infelizmente pouco trabalhada em nosso país, a despeito de nossas numerosas estradas, e traz para sua obra de estreia o lúdico olhar infantil, perspectiva esta que faz Sobre Rodas triunfar, até mesmo sobre suas ocasionais irregularidades.
O longa, portanto, encontra seus melhores momentos em sua cativante e agradável leveza e no resgate da realidade das rodovias e das pequenas cidades brasileiras, elementos sobretudo simbolizados pela doce amizade de Laís e Lucas, jovens de contextos sociais distintos e de condições físicas muito díspares que encontram-se em suas buscas por identidade. Ambos próximos da adolescência, essa difícil fase da cristalização das características individuais de cada um, os dois protagonistas de D'Addio convergem de maneira encantadora nos não-lugares que constituem o interior brasileiro, e também o íntimo de cada um.
Tendo como maior força a originalidade de sua dupla de heróis — ainda que crianças na estrada, como provam o supracitado Central do Brasil e o clássico Alice nas Cidades, de Wim Wenders, não sejam necessariamente uma novidade —, Sobre Rodas acaba escorregando em decorrência da fragilidade de sua substância dramática. A questão do abandono parental, por exemplo, pode ser um fator crucial para D'Addio, mas jamais recebe a devida atenção, especialmente porque a montagem soa afobada e apressada em determinadas alturas e também por causa do desnível das interpretações.
Enquanto parte do elenco parece seguir uma cartilha naturalista, a outra prefere a via de um certo tipo de caricatura divertida, o que dilui as potencialidades da trama e não permite com que D'Addio aprofunde-se na execução e condução de seu roteiro. Desse modo, apesar de ter como destaque a direção de fotografia, que faz o melhor uso de drones e da luz natural para explorar as vastas paisagens dos campos interioranos brasileiros, a técnica de Sobre Rodas deixa a desejar nos instantes em que o relevante e importante conceito do realizador não pode sustentar-se por si próprio, como no desenlace da questão paternal.
De uma forma ou de outra, nem mesmo a exaustiva repetição de cenas de Laís e Lucas — cujos intérpretes seguramente podem tornar-se bons atores no futuro, demonstrando ser apostas promissoras nesta película — em viagens na estrada diminui os êxitos desta aventura infantojuvenil, que une duas vertentes ainda um tanto quanto ausentes, porém necessárias, dentro do escopo evolutivo da cinematografia nacional: a do filme de estrada e a dos filmes teens, esta cada vez mais representada pela franquia Detetives do Prédio Azul e pelas adaptações da obra da autora Thalita Rebouças.
Assim, apesar dos deslizes e equívocos, esta aventura justifica-se, antes de mais nada, por sua clara procura por novas potencialidades cinematográficas. E se dissermos que ainda falta chão para D'Addio percorrer como diretor, também seria preciso ressaltar que ele está no rumo certo, como mostra o bom exercício cinematográfico que é este Sobre Rodas. Assim como seus protagonistas, o realizador mostra, como a maioria dos artistas de primeira viagem em um trabalho do tamanho de um longa-metragem, que está em busca de sua identidade, processo este que, por natureza, não é à prova de erros.