Roubar é uma arte
por Bruno CarmeloO primeiro elemento que se destaca nesta biografia é a qualidade de sua produção. O Anjo conta com muitas dezenas de cenários diferentes, todos amplos, incluindo vários cômodos cuidadosamente ornados com objetos e acessórios dos anos 1970. Cada quarto, corredor ou ala de hospital é finamente iluminado e enquadrado, através de uma câmera que utiliza cada plano de maneira simples, discreta e ao mesmo tempo repleta de significados. A montagem, impecável, cria um ritmo intenso ao longo de duas horas de duração. O filme possui o raro mérito de ser ao mesmo tempo acessível e rigoroso: ele funciona bem como projeto comercial, mas sem abrir mão de ambições estéticas.
O personagem principal é uma figura fascinante. “Ladrão de nascimento”, como se define, Carlos Robledo Puch (Lorenzo Ferro) cometeu mais de quarenta roubos e onze assassinatos sem qualquer prazer sádico, nem por necessidade do dinheiro. O personagem frisa que veio de uma família boa, amorosa, de moral rígida. Carlitos rouba porque possui um talento especial para isso. Roubar, para ele, é uma arte, um desafio cujo prazer está na própria ação, e não na recompensa, normalmente distribuída aos colegas. “O mundo pertence aos ladrões e aos artistas”, comenta outro personagem, aproximando ambos devido à manipulação, astúcia, criatividade e senso de espetáculo.
O Anjo também efetua um trabalho notável ao descrever o prazer sexual associado ao roubo. O homoerotismo envolvendo Carlos e o parceiro Ramón (Chino Darín) fornece cenas tensas e bastante criativas, enquanto o próprio fato de roubarem confere aos ladrões uma sensação de onipotência, que se traduz em acréscimo de virilidade e libido. Não por acaso, a família de ladrões profissionais composta por Ramón, a mãe Ana María (Mercedes Morán, excelente) e José (Daniel Fanego) é a mais sexualmente ativa, com o casal de adultos seduzindo os adolescentes independentemente do gênero. Enquanto isso, Carlitos é visto com frequência de cueca, com o corpo sem pêlos sugerindo um aspecto infantil e casto, razão pela qual jamais é interpretado como possível assassino.
Os preconceitos são desfeitos pela aparência de “cidadão de bem” de um dos maiores criminosos da história argentina. A interpretação de Lorenzo Ferro é excelente por navegar entre a consciência de seus gestos e a impulsividade dos mesmos, num misto de ingenuidade e malícia. Ferro sabe usar os lábios para projetar simultaneamente infantilidade e sedução, dançando de um modo tão inconsequente quanto seguro de si. Ele é cercado por personagens igualmente complexos, interpretados por astros de peso da cinematografia nacional. Enquanto a maior parte das cinebiografias reduz os coadjuvantes a figuras orbitando o protagonista, Ortega consegue encontrar um espaço autônomo para cada indivíduo.
O mesmo vale para o ritmo de suspense e a relação com o real: esquivando-se das armadilhas das biografias tradicionais, para as quais o mais importante é incluir o máximo de passagens verídicas possíveis, O Anjo se esforça em criar metáforas, poesia, e demais elementos representativos da época e dos fatos. A dança de Carlitos, no início e no fim, o revólver e o lança-chamas apontados diretamente à câmera – e, por extensão, ao público -, os encontros com Ramón no quarto de hotel e a brevidade das mortes subvertem expectativas e provocam os sentidos para além da linearidade dos fatos e das relações de causa e consequência. O filme utiliza uma história verídica para estabelecer uma fábula amoral, sem julgamentos, e com rebuscada linguagem cinematográfica, questionando a psicologia de um criminoso e sua relação com o tecido social.
Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.