O castelo de cartas
por Bruno CarmeloDesde que se tornou conhecido fora de seu país, o iraniano Asghar Farhadi tem sido estimado por críticos e cinéfilos devido ao exímio talento com crônicas de costumes – em outras palavras, pelo modo como insere numa única narrativa conflitos morais, religiosos, de gênero, de gerações, de classes sociais. O drama francês O Passado (2013) serviu para testar esta habilidade em uma cultura estrangeira, com bons resultados. Agora, o diretor comprova a universalidade de seu olhar no espanhol Todos lo Saben.
O elenco traz alguns dos atores hispanófonos mais prestigiados da atualidade, a exemplo de Javier Bardem, Penélope Cruz e Ricardo Darín, porém a narrativa não permite arroubos individuais de nenhum deles. O projeto permanece multifocal, ou “coral” como chamam os franceses, acompanhando pelo menos meia dúzia de adultos cujas vidas se entrecruzam e se afetam, permitindo explorar todos os entraves morais citados acima. Partindo de uma premissa semelhante à de Procurando Elly, o cineasta envereda pelo suspense, numa estrutura de castelo de cartas. Após gastar tempo considerável descrevendo a vida perfeita de uma família abastada, o filme planta um problema, e então espera que este desencadeie outros, e assim por diante, até observar a ruína da família burguesa.
O recurso soaria sádico se o roteiro não se importasse tanto com seus personagens. Farhadi é, de fato, excelente nos diálogos e na construção psicológica dos adultos de classe média, sendo capaz de construir uma narrativa complexa para os diversos protagonistas. Melhor ainda, nenhum deles é julgado positiva ou negativamente por seus atos – este trabalho cabe apenas ao espectador. A espanhola Laura (Penélope Cruz), seu marido argentino Alejandro (Ricardo Darín), o ex-namorado dela, Paco (Javier Bardem), a esposa dele, Bea (Bárbara Lennie), o tio Fernando (Eduard Fernández) e a jovem mãe Mariana (Elvira Minguez) experimentam diversas transformações ao longo da trama sobre uma festa de casamento transformada em tragédia.
Alguns acontecimentos extremos, nas mãos de roteiristas menos experientes, poderiam se tornar melodramáticos, ou mesmo ridículos. Felizmente, Todos lo Saben fornece razões plausíveis para estas atitudes. O suspense é muitíssimo bem construído, com uma tensão progressiva e asfixiante – quase literalmente, aliás, visto que pelo menos três personagens sofrem de falta de ar nesta história. O elenco se mantém contido, evitando o mar de lágrimas esperado do tema, e cultivando a ambiguidade da reunião coletiva face à tragédia: e se a pessoa ao lado fosse responsável pelo incidente?
Para embaralhar as respostas, entram em cena o catolicismo, a família patriarcal, o poder financeiro, as noções distintas de honra masculina e feminina. Os elementos são ao mesmo tempo típicos de uma família latina e suficientemente amplos para serem compreendidos em quaisquer núcleos afetivos – com o acréscimo do medo da morte, funcionando como catalisador de crises. Farhadi constrói um whodunit (trama de detetive em busca de um culpado, onde todos são suspeitos) tão competente que a revelação do crime beira a leve frustração. Este é o tipo de experiência em que o caminho vale mais do que a chegada.
Além disso, o diretor demonstra cuidados valiosos em sua trama, que elevam a estrutura formulaica a algo vibrante e verossímil. O uso da tecnologia despertando a sensação de vigilância, a presença discreta, porém determinante de um guia na história (o ex-policial interpretado por José Angel Egido), o caos da festa na qual uma dezena de pistas é plantada, além do cuidado de fornecer pistas falsas fazem com que esta seja uma experiência sob medida para provocar o espectador. A cereja no bolo é a construção de um raro suspense criminal diurno, em cenários ensolarados e paradisíacos. A direção de fotografia explora os espaços com uma câmera ágil seguindo personagens, em paralelo com a montagem capaz de equilibrar a presença de todos sem que ninguém seja esquecido por tempo demasiado. A estética é discreta, porém funcional – ao invés de chamar atenção para si mesma, a imagem é toda dedicada aos personagens.
Após o hermético O Apartamento, Farhadi fornece provavelmente seu filme mais acessível, que pode estabelecer um diálogo amplo com o público dos circuitos de arte. Mesmo assim, quem se detiver nos detalhes deve perceber alegorias valiosas, a exemplo da fortuna voltando para atormentar seus proprietários. Talvez o projeto seja o menos original na carreira do cinesta iraniano, pelo fato de seguir à risca uma estrutura consagrada do gênero. Ainda assim, constitui uma eficaz e instigante incursão nas regras do suspense policial.
Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.