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    Amor até às Cinzas
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Amor até às Cinzas

    Jornada íntima

    por Bruno Carmelo

    Os cinéfilos familiarizados com a obra de Jia Zhang-ke devem saber que, para o diretor chinês, uma história de amor nunca é apenas o encontro de duas pessoas, e sim um épico que atravessa vários anos, várias cidades, com direito a dezenas de personagens coadjuvantes, centenas de figurantes e uma infinidade de cenas. O cineasta gosta da amplitude do espaço e o tempo para falar de sentimentos íntimos.

    No caso de Ash is Purest White, Qiao (Zhao Tao) pega ônibus, trens, barcos, caminha por planícies enlameadas, restaurantes cheios, pistas de dança, estações, portos. A personagem está em constante movimento, apesar de o seu principal conflito se relacionar com a imobilidade: ela é presa durante cinco anos por disparar uma arma de fogo ilegal, na intenção de proteger o namorado Bin (Fan Liao) do ataque de inimigos. Estamos no terreno das pequenas máfias locais, onde Bin ocupa uma posição de destaque, com o auxílio precioso da namorada.

    É muito fácil compreender o funcionamento deste universo, apesar das pouquíssimas explicações do roteiro. Cada cena apresenta um festival de figurinos, acessórios e músicas, deixando muito claro o contexto em que nos inserimos. A câmera efetua um balé discreto, porém de precisão cirúrgica, para acompanhar cada passo da heroína. Zhang-ke consegue combinar o desenho meticulosamente calculado de cada enquadramento com a aparência de naturalidade. Zhao Tao, musa habitual do diretor, efetua seus gestos com tamanha fluidez que beiram o improviso.

    Além do preciosismo estético, o filme impressiona pelos saltos invisíveis no tempo: com um simples corte de montagem, rejeitando qualquer explicação em cartelas ou diálogos, a narrativa avança alguns anos. Apenas os cortes de cabelo e os novos contextos indicam a transformação: o projeto acredita na capacidade do espectador para imergir na história e compreender onde os personagens se encontram, e por qual motivo. O romance pode constituir o atrativo principal do projeto, mas diante da relação discreta entre Qiao e Bin – não espere um beijo sequer – outro prazer oferecido ao espectador é de ordem técnica. Ash is Purest White é um mecanismo de funcionamento impecável.

    No terço final, a trama perde um pouco do fôlego, quando insere uma reviravolta melodramática na história. Até então, estávamos no terreno da brutalidade – vide a excelente cena de luta – mas Zhang-ke decide terminar seu projeto com a irrupção da doença, buscando formas mais convencionais de empatia. A atenção, antes unicamente voltada a Qiao, divide-se igualmente com Bin, enfraquecendo a jornada pessoal. O roteiro inclui, vejam só, um novo personagem no terço final e uma improvável discussão sobre alienígenas, além de pistas falsas sugerindo um novo amor à heroína. A conclusão torna o conjunto menos coeso, mas não retira os méritos do domínio estético de seu diretor.

    Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.

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