Boas intenções
por Lucas SalgadoMuitas vezes, na análise crítica de um filme, é importante separar a significância e atualidade temática do desenvolvimento narrativo e estético de uma obra. Um longa pode ter um tema muito importante e ao mesmo tempo entregar uma execução precária. E também pode ser narrativamente fascinante ao tratar de banalidades. Pois bem, Música Para Quando as Luzes se Apagam se encaixa na primeira situação.
Debatendo questões super importantes e atuais envolvendo gênero, juventude, inquietude e deslocamento com o próprio corpo, o filme abre portas para debates fundamentais nos dias de hoje, em que vivemos os avanços do século XXI acompanhados por uma onda de preconceito, intolerância e conservadorismo que buscam ditar como cada um deve viver sua vida.
Num misto de documentário e ficção, o filme acompanha uma autora (Júlia Lemmertz) que visita uma vila no sul do Brasil. Lá, começa a seguir os passos de Emelyn (Emelyn Fischer), uma jovem insatisfeita com seu corpo que inicia o processo para se tornar Bernardo. A autora acompanha as inquietudes de Emelyn, sua relação com os pais e amigos.
O filme começa bem, com uma boa dinâmica entre as personagens, mas aos poucos vai deixando a mulher vivida por Lemmertz de lado e focando em uma série de alegorias e metáforas que não funcionam tão bem. Música Para Quando as Luzes se Apagam é muito competente ao retratar o desconforto e a sensação de deslocamento de sua protagonista. Em determinado momento, vemos Emelyn e a namorada se beijando apaixonadamente. Na sequência, vemos um jovem garoto entrar no meio do beijo e seguir ficando com a namorada, enquanto Emelyn aparentemente assiste tudo de forma passiva. Ali, antes de fazer completamente a mudança de gênero, ela não consegue entregar à amada tudo o que pretendia.
Por outro lado, a produção investe em várias metáforas óbvias para tratar do masculino e do feminino. Enquanto o futebol e o skate surgem como exemplos de masculinidade, a patinação e o bambolê surgem para representar o feminino. São elementos muito óbvios e caricatos para uma obra que pretende debater o gênero de forma fluida.
Tentando reforçar o caráter documental, o filme investe numa variação de razões de aspecto, numa brincadeira parecida com o que Xavier Dolan faz em Mommy. Boa parte da produção segue uma janela de 4x3, muitas vezes acompanhada por uma fotografia bem danificada, tentando passar a imagem que aquela cena foi gravada por uma câmera amadora. É interessante a forma como a razão de aspecto se amplia nas sequências mais catárticas, quase como momentos de entrega ou redenção.
Embora ofereça bons momentos contemplativos de silência, a produção peca um pouco na trilha sonora, principalmente na opção de repetir constantemente "Sonata ao Luar", de Beethoven. Não restam dúvidas de que a música é belíssima, mas a repetição acaba por tornar a experiência menos impactante.
Roteirista de Os Famosos e os Duendes da Morte, que também focava sua atenção nas inquietudes da juventude no sul do país, Ismael Caneppele faz aqui sua estreia como diretor. Repleto de boas intenções, o longa acaba pecando na execução.
Filme visto durante a cobertura do 50º Festival de Brasília, em setembro de 2017.