Não existe só o bem e o mal
por Diego Souza CarlosAo olhar para o passado recente das produções hollywoodianas destinadas ao público infanto-juvenil, é possível contar nos dedos os projetos que realmente causaram impacto na cultura pop. Devido ao talento de Suzanne Collins somado a um grupo de atores carismáticos e uma direção assertiva, Jogos Vorazes sempre foi uma franquia aclamada por sua maturidade e relevância.
Oito anos após o encerramento da história principal, com um desfecho agridoce a Katniss Everdeen em A Esperança - Parte 2, o público retorna à arena mortal e desesperançosa em A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes para conhecer uma fagulha crucial para a construção deste universo.
Com o retorno de Francis Lawrence, cineasta responsável por (quase) todos os filmes da saga, o prelúdio chega com duas motivações: preencher a lacuna de adaptações da série literária e apresentar a origem de Corolanus Snow, aquele que viria a se tornar o grande antagonista da heroína vivida por Jennifer Lawrence.
Interpretado por Tom Blyth, de A Idade Dourada e Robin Hood, o personagem ganha sua própria trama anterior à grande revolução - 64 anos antes para ser preciso. Nascido na grande casa de Snow, que não andava muito bem em popularidade e financeiramente, ele se prepara para sua oportunidade de glória como um mentor dos Jogos. Inclusive, ele e os demais personagens da elite participam da 10ª edição do torneio mortal, em um ano que determinaria o fim ou a permanência do sádico evento.
O destino de sua Casa depende de sua pequena chance de ser capaz de encantar, enganar e manipular seus colegas para conseguir mentorar o tributo vencedor. Com a garota tributo do Distrito 12, Lucy Gray Baird (Rachel Zegler), a narrativa toma caminhos cada vez mais inesperados durante a densa narrativa.
Toda vez que uma sequência, prelúdio ou remake é anunciado, muitos se perguntam sobre a necessidade desta nova produção. Para aqueles que estão distantes da franquia Jogos Vorazes desde o encerramento da saga inicial, a chegada do novo filme com certeza traz um ar de curiosidade somado ao receio. Neste sentido, A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes poderia ser facilmente mais um longa caça-níquel, mas se justifica de muitas maneiras ao longo das quase 3 horas de exibição.
A Lionsgate e a própria autora dos livros colaboram para isso, já que parte de ambos a decisão em trazer Francis Lawrence de volta aos Jogos. Completamente habitado a este universo distópico, o cineasta conduz uma direção assertiva ao demonstrar tanto as ambientações degradantes desta sociedade falha quanto se atém à construção do elenco principal através de suas lentes.
As escolhas estéticas também colaboram para que o público consiga distinguir o período de cada obra. Enquanto a aventura de Katniss tem ares mais modernos em sua estética, aqui o diretor de fotografia Jo Willems estabelece um visual robusto que valoriza os ambientes a favor da imersão do público, nesse mix de influências de diferentes eras. Mesmo com diversas tomadas em fundo verde ou ambientes fechados, existe um esforço em apresentar traços realistas condizentes à atmosfera desesperançosa que o filme se firma. Essas escolhas, inclusive, estão demarcadas na própria divisão do longa.
Um trunfo do quinto filme da franquia está na forma como humaniza sua dupla principal. Há complexidades muito maiores do que o romance que se desenrola ao fundo, apesar de ser vital para o seu desfecho. Trata-se de luta de classes ligeiramente camuflada diante do envolvimento da dupla, algo que já tivemos acesso no passado. Na construção destes personagens, vale ressaltar também que o olhar maniqueísta ao qual a franquia nunca precisou recorrer também está ausente - áreas cinzentas sempre são bem-vindas.
Snow não se mostra vil como no fim de sua vida, mas a faísca do mal está ali. Enquanto isso, Lucy Gray, parafraseando Lina Pereira, não é inocente e nem boba. Ambos estão subjugados a um sistema que espera vê-los definhar em frente a diferentes audiências. Dentro da dinâmica dos Jogos Vorazes, o público também ganha conhecimento ao descobrir os bastidores das primeiras edições do evento e, ao acompanhar o 10º torneio, entende-se como elementos básicos da franquia se tornaram seus pilares, do controle das massas através do espetáculo ao reforço desta realidade distópica através da violência bruta e psicológica.
Apesar de apresentar uma das narrativas mais consistentes dentro da franquia nos dois primeiros atos do filme, há também um deslize no capítulo final da trama. No entanto, essa perda no ritmo não interfere na experiência como um todo. As atuações dos protagonistas seguram qualquer indício de perda nas rédeas da trama, principalmente nas sutilezas de Tom. No elenco de apoio, chega a ser impressionante a forma como Lawrence dirige Viola Davis, que dá vida a uma das vilãs mais cativantes de toda a franquia. Ao seu lado, o desempenho de Peter Dinklage e Hunter Schafer também são satisfatórios, apesar da atriz de Euphoria receber menos atenção do roteiro.
Um ponto interessante em ver como tudo começou está em uma das primeiras sugestões de Snow pela atualização dos Jogos. Em determinado momento no início do projeto, enquanto ainda é um estudante, Corolanus sugere que exista uma apresentação de cada tributo para que o público crie laços com a audiência a fim de criar torcidas e aumentar o número de espectadores. De forma metalinguística, o público das salas escuras também é convocado a se afeiçoar a esta nova gama de personagens - independente de desfechos futuros já conhecidos pela maioria.
Próximo ao desfecho, existem algumas falas emblemáticas sobre as múltiplas capacidades das pessoas ao serem colocadas sob situações extremas. Mesmo que exista bondade e maldade dentro de cada ser humano, as circunstâncias são determinantes para cada ato. Entre pássaros e serpentes, Snow e Lucy se misturam e até mesmo se corrompem, mas, ao fim, ambos tomam decisões de acordo com suas convicções. Assim, mostram suas verdadeiras essências - mais uma vez, longe do simplista bom e mau.
Jogos Vorazes sempre foi uma franquia bem quista não apenas por seu apelo político intrigante e seus absurdos, mas a popularização da série também se deve às figuras emblemáticas que moldaram histórias cheias de camadas em cada indivíduo apresentado. É natural que revoluções tenham um rosto que simbolize a luta, e A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes nos lembra que a destruição e a crueldade também precisam de uma face. Ao humanizar o grande vilão da franquia e dar voz a um símbolo que mudaria tudo no futuro, o longa reforça a grandiosidade da série.