Em tempos que o entretenimento aborda cada vez mais os conflitos de classes que temos na sociedade – inclusive sendo tópico central de Parasita, o ganhador do Oscar de melhor filme –, faz sentido que uma obra tão provocativa como o espanhol O Poço (El Hoyo) cause burburinho nas redes sociais como o fez nas últimas semanas. Entretanto, há um problema claro no longa de estréia do diretor Galder Gaztelu-Urrutia, pois apesar de trazer para seu filme diversas metáforas – que devem gerar múltiplas interpretações possíveis –, permanece a impressão de que a obra não tem nada a dizer de fato.
A trama gira em torno de uma prisão vertical com um sem-número de níveis onde a alimentação dos detentos vem através de uma plataforma que desce diariamente passando por todos os andares. Acompanhamos então Goreng (Ivan Massagué), o protagonista que acorda em seu primeiro dia no local com Trimagasi (Zorion Eguileor), seu companheiro de cela e única companhia, responsável por explicar a dinâmica do local. Não tarda para que Goreng – e o espectador – entenda como tudo funciona: cada andar hospeda uma dupla e, todo mês, a dupla é realocada aleatoriamente. A comida não é racionada – beneficiando quem está nos primeiros andares e prejudicando quem está nos últimos –, portanto, estabelecendo a primeira metáfora na obra, sobre o capitalismo que olha quem está acima, mas não se importa com os de baixo.
Partindo desta premissa, o diretor trabalha seus poucos elementos em cena como pistas a serem encontradas e encaixadas em um quebra-cabeças, remetendo à filmes como Jogos Mortais e Cubo, onde novas pistas trazem consigo informações que, ou empurram a trama para frente ou mudam seu rumo através de reviravoltas. Aqui, porém, prevalece uma sensação de vazio conforme a trama avança sem necessariamente encaixar as peças de forma coesa para apresentar um argumento. A premissa do conflito de classes – tão bem delineada nos primeiros minutos da obra – se perde em meio à simbolismos excessivos que usam desde Dom Quixote até citações bíblicas e podem – ou não – ter relevância na trama, tornando impossível entender para onde a obra se direciona – e tampouco instigando curiosidade sobre isso.
Desta forma, fica difícil chegar ao final do filme sem refletir sobre seus muitos aspectos que são introduzidos, desenvolvidos – até certo ponto – e depois esquecidos para dar lugar a novos itens que passarão pelo mesmo processo. Temos como um exemplo simples a faca corta-tudo de Trimagasi: cria-se uma ideia de que a arma branca pode ser relevante na jornada da dupla, mas é apenas um aspecto que desaparece após a meia-hora inicial. Assim como as próprias pessoas ali dentro, tais signos soam descartáveis, mas seria forçar a barra apontar que isso é proposital. Pelo contrário, a impressão é de que a dupla David Desola e Pedro Rivero, responsáveis pelo roteiro, realmente erraram ao sobrecarregar seu texto de ideias “jogadas” em um filme cuja proposta – colocar seu foco em uma cela com duas pessoas – é limitante.
Cabe, porém, um elogio à fotografia de Jon D. Domínguez, pois aí temos um aspecto da obra que transmite perfeitamente a dinâmica da classe alta/baixa através de seu banquete flutuante. No nível 0 – a cozinha –, a mesa é perfeita, enche os olhos e desperta o desejo de experimentar pelo menos algum prato colocado ali – apenas pela beleza do conjunto exibido –, já nos níveis muito abaixo, a plataforma apenas com as sobras – ou nem isso –, bagunçada e pisoteada pelos dos níveis superiores. O uso das cores – um alegre dourado para a mesa cheia e cozinha e o depressivo azul para a mesa vazia e as celas – traduzem o emocional das próprias pessoas: enquanto alguns comem por prazer, outros lutam contra a fome.
Com tantos problemas no desenvolvimento apesar de sua premissa interessante, nota-se como O Poço poderia ter sido muito mais fascinante se fosse concebido como um curta. Seu final em aberto deixa o questionamento: foi proposital ou não havia como consolidar todas as ideias? A premissa quase sobrenatural utilizada na sequência final consolida um roteiro que se assume ou cheio de furos ou pretensioso por optar pelo viés surrealista apoiando-se em uma ou duas cenas de cunho onírico. Logo, as cenas finais corroboram para a sensação de desimportância ou incoerência, partindo das diferentes interpretações possíveis, jogando fora o conflito travado no segundo ato ou simplesmente ignorando características criadas pelo próprio roteiro.
Perdendo-se em sua própria história, há poucos méritos em O Poço para que este se torne marcante entre obras semelhantes, mas que exploram muito melhor as críticas sociais a que se propõem. O diretor Galder Gaztelu-Urrutia até entrega momentos inspirados, mas que sem foco, não funcionam em prol da mensagem – se é que existe uma – e causam um vazio que se agrava ainda mais com o final. Sobra originalidade, mas falta direcionamento. Um erro grave para uma obra com tanto potencial provocativo, mas que só incomoda mesmo pelo roteiro demasiadamente comedido. Tal qual o banquete na plataforma, um grande desperdício, é óbvio.