Se você imaginar substituir a mesa de comida gigantesca que aparece para os personagens de O Poço por um carrinho de supermercado lotado de álcool em gel (o produto mais valorizado aqui no Brasil agora!), entenderá perfeitamente como as metáforas e simbologias desta produção espanhola para a Netflix são assustadoramente reais e atuais. Enquanto muitos se beneficiam por sua condição financeira superior, outros pagam pelas migalhas que o topo da pirâmide social imposta pelo capitalismo faz sobrar para eles – e, sem sutileza, o diretor Galder Gaztelu-Urrutia alfineta todo o sistema em que vivemos atualmente – seja qualquer um de seus “níveis” (como é dito no longa) – por fatores sociais, econômicos, culturais e religiosos.
Por mais óbvio que pareça toda a análise – e a palavra “óbvio” tem um significado até cômico, já que parece que o Sr. Trimagasi (Eguileor) a usa como um bordão – isso também é uma forma de demonstrar para muitos como esse desnível social é escancarado – que as diferenças socioeconômicas não são um mero exagero pregado por um grupo de pessoas – as exemplificações que O Poço passa são todas pontuais – há significados em praticamente todos os seus planos, enquadramentos e diálogos – isso, por si só, não é algo de que o filme possa se vangloriar tanto – afinal, recentemente podemos ver que o excesso de simbolismos em uma narrativa pode ser um inimigo também, como aconteceu com o terror Maria & João: O Conto das Bruxas – felizmente, os realizadores aqui acertam em apenas apresentar situações que forçam o uso da percepção e até opiniões do espectador – algo que sempre digo: toda boa arte tem o poder de conseguir atingir seu máximo resultado através da subjetividade.
Em uma trama onde todos os personagens (obviamente) representam algo, somos apresentados há um tipo de experimento de correção social em um futuro não muito distante – o poço do titulo nada mais é do que um tipo de clinica de reabilitação para diversos defeitos sociais, digamos assim – seja para criminosos ou pessoas que buscam algum desafio ou melhoria na vida – composto de inúmeros níveis, que possuem apenas um pequeno quarto, que são habitados, cada um deles, por duas pessoas – o aprisionamento destes recebe todos os dias a decida de uma enorme mesa de alimentos – descendo do topo até o fundo, o banquete, à medida que vai passando pelos níveis, vai ficando cada vez com menos alimentos – obrigando aqueles que estão abaixo a comerem, literalmente, restos de comida ou (nos casos extremos) recorrerem ao canibalismo – mas o detalhe é que, a cada 30 dias, os prisioneiros são trocados de níveis – podendo estar em um mês mais próximos do topo (onde tem mais comida) ou mais longe (onde a comida praticamente não chega) – quem acaba de chegar ao lugar é Goreng (Massagué), fazendo companhia para um senhor que já vive ali faz algum tempo, o frio e resmungão Trimagasi – a medida que os dias vão passando – e trocando de níveis – Goreng vai se dando conta do inferno que precisará enfrentar para sair de lá com vida – em meio de outros prisioneiros/moradores imprevisíveis e misteriosos.
Somente por essa sinopse, O Poço já seria uma obra um pouco diferenciada da maioria dos thrillers de suspense – mas o cuidado narrativo que seu diretor impõe ao trabalho é digno o suficiente para alcançar um nível reflexivo e imersivo em algo que realmente se torna perturbador – o que justifica as cenas sanguinolentas, como um tipo de reflexo da selvageria social que o mundo enfrenta – literalmente, sugerindo que muitos são obrigados a se alimentarem uns dos outros, devidos as condições em que vivem.
Aliado por um design de produção simples, mas eficaz, o filme consegue transformar o ambiente pequeno e simplório em algo bastante reconhecível para o espectador – embora todos os níveis tenham as mesmas características, é bastante curioso como os designers são criativos em adicionar detalhes diferentes cada vez mais insalubres conforme vamos chegando mais ao fundo do lugar – algo que as sinalizações do lugar também obedecem – seja a luz vermelha indicando apreensão ou perigo ou pelos efeitos sonoros do próprio alarme, assim como o ruído da mesa de comida descendo o poço – elementos que são propositalmente incômodos para atingir o espectador – assim como a sinistra trilha-sonora de Aránzazu Calleja, que parece usar barulhos de pratos, talheres e copos de vidro para compor algumas de suas melodias, como um tipo de rima com o medo misturado à satisfação quando a mesa aparece.
O elenco também cumpre bem seus papeis – se Ivan Massagué como Goreng consegue passar seu ideal de tentar ser justo e compreensível com os demais companheiros de confinamento, o destaque aqui fica mais para o veterano Zorion Eguileour como Trimagasi – conseguindo, com um tom de voz sarcástico e irônico, transmitir todo o seu desprezo pelos demais – não hesitando em cometer atrocidades para sobreviver – também merece menção a participação silenciosa de Alexandra Masangkay como a misteriosa e violenta Miharu, além de Antonia San Juan, que vive uma espécie de assistente social confinada no lugar.
Mas creio que todos esses bons atributos são só o principio de O Poço – o choque maior que sua trama pode transmitir é, sem dúvidas, através de sua critica e análises sociais e religiosas – que podem ser encaradas sobre diferentes prismas – e acredito que o espectador adverso a questões de luta de classes ou fanatismo religioso talvez não consiga apreciar com bons olhos esta obra – portanto, não leia os próximos parágrafos se ainda não assistiu o longa, pois comentarei sobre o que entendi do filme.
A primeira coisa (e mais escancarada e óbvia) são os níveis do Poço – representando as classes sociais mais abastadas nas partes de cima, a classe média mais ao meio e, claro, os mais pobres ao fundo; entretanto, esta metáfora simples ganha alguns contornos mais diferenciados – repare na questão de que funciona também como uma escala de renda/salário – a troca dos prisioneiros de mês em mês evidencia a questão da falta de empatia da sociedade – creio que todos já tiveram altos e baixos em questões financeiras de tempos em tempos, mas, lamentavelmente, muitos não se colocam no lugar dos outros – o que justifica perfeitamente o fato de quem está nos níveis mais superiores não ter a menor vontade de racionar a comida para os que estão em baixo – “quando eu estava lá em baixo não deixavam comida para mim, agora é minha vez de aproveitar”, diz um dos prisioneiros – afinal, como um outro deles diz, há comida suficiente para todos os níveis, mas os mais altos não pensam nisso, preferindo consumir tudo o que podem – novamente vamos nos lembrar das pessoas de melhor situação financeira estocando comidas e materiais de higiene aqui no Brasil, devido ao coronavírus.
Outro fator curioso é sobre a questão de ajuda ao próximo ou a “solidariedade espontânea” que a personagem de Antonia San Juan cita – o fato do lugar ter sempre duas pessoas por níveis ajuda a visualizarmos isso: no inicio, quando Goreng conhece Trimagasi, fica notório como o ancião visualiza a relação dos dois como uma “relação de troca” – “a partir de agora só vou lhe informar o tanto de coisas que você me informar” – um jeito mais discreto de mostrar como muito das relações humanas funciona na base da troca, literalmente – de fazer algo apenas para poder ter benefícios futuros; o que nos remete à um dos diálogos mais enigmáticos do longa, quando Goreng questiona que os “de cima” não estão racionando a comida para os “de baixo” e, por isso, é taxado de comunista por Trimagasi – e isso talvez nos mostre a questão religiosa inserida em todo o longa.
Goreng é, evidentemente, visualizado como Jesus Cristo. O simples fato de querer racionar comida ou achar soluções para a sobrevivência de outros é o suficiente para o rotularem de socialista – titulo que, com o fanatismo religioso da atualidade, seria colocado até mesmo em Jesus, caso vivesse nos dias de hoje, creio eu. O personagem de Massagué, além de demonstrar em sua aparência as atribuições físicas que o filho de Deus recebeu pela cultura religiosa ocidental (a barba, principalmente), representa a pureza – ele entrou no Poço por livre e espontânea vontade, apenas para conseguir um “certificado” – como se sua busca por significado na vida fosse o mais importante – o fato dele ter escolhido um livro, como seu único objeto a ser levado para o lugar nos remete a sua opção pela literatura, ou mais diretamente, pela inteligência – e, sem dúvidas, o fato de ser Dom Quixote tem muito a ver com o que enfrentará – ora, Dom Quixote envolve um homem que tem que enfrentar inimigos imaginários e fora de sua época – a desigualdade social não seria um inimigo invisível? Ou a pregação de valores religiosos ultrapassados e infundados pelo conservadorismo também não?
Ainda traçando algum paralelo com o livro clássico de Miguel de Cervantes, temos em Trimagasi um tipo de Sancho Pança – ele tenta mostrar para Goreng a realidade da situação do Poço – representando, junto a isso, a visão de mundo mais para o lado da direita conservadora ou alguém que aceita as condições precárias do sistema capitalista e do individualismo – o fato dele ter escolhido a sua super faca cortadora como o objeto que levou para o lugar indica isso – sem falar que o crime que cometeu acidentalmente para ir ao Poço foi em decorrência de sua fixação pelo consumismo – mas já na assistente social de Antonia San Juan é possível visualizarmos um lado mais humanitário – ela divide sua comida com seu cachorro-salsicha (obviamente, mostrando também algum tipo de critica ao abuso que os animais sofrem para serem consumidos pelos humanos – e o triste fim do cãozinho confirma isso), além de tentar racionar e conscientizar os demais a manter o alimento para todos – sendo rechaçada pela ganancia (inclusive pelos “de baixo”) – se entristecendo pelo fato de que somente pela ameaça de Goreng seu pedido é atendido; fora que ela é também voluntária – afinal, era funcionaria do Poço – e, acometida por um câncer, ela vê na ajuda ao próximo um tipo de tentativa de “redenção”, mesmo que imperfeita – tanto ela como Trimagasi acabam sendo usados como um jeito de representar o bem e o mal/emoção e razão dentro de Goreng – uma representação mais simplória de sua consciência – e então surge Miharu e sua fama de louca e assassina durante a suposta busca por sua filha – que ninguém viu e não acreditam que exista – um tipo de figura de linguagem que mostraria como muitas mulheres são subjugadas pela sociedade, que preferem ataca-la do que ajuda-la – seu lado mais humano, em meio a loucura a qual é submetida, é demonstrado pela gratidão que passa para Goreng, por ele ter a ajudado – e a sugestão de que teria feito sexo com ele também mostraria uma espécie de ligação humana entre os dois – contradizendo a imagem de “monstra” da mulher – taxada assim pelo simples fato de tentar garantir a sobrevivência da filha (que falarei mais a frente).
Entretanto, O Poço ganha um contorno mais forte em sua alegoria religiosa quando surge o personagem de Emilio Buale – Barath é aquele tipo de religioso que não faz mal a ninguém – mas, infelizmente, acaba sendo manipulável – e quando tenta subir com uma corda para o nível acima e é questionado se seu Deus é o mesmo dos que estão em cima, fica evidente como a questão religiosa no mundo é segregadora – e de como a intolerância religiosa ou até mesmo o racismo (afinal, Barath é negro) é inserido entre as classes sociais – não a toa, ele acaba literalmente levando merda dos moradores do nível superior ao que estava.
A partir daí, o longa traça uma descida que representa a tentativa de Jesus provar para a “Administração” que o ser humano vale a pena – que pode existir bondade nas pessoas – sendo assim, é visível que o diretor tenta mostrar os integrantes do nível zero como um restaurante de alto nível, com comidas caras e exorbitantes – o que reflete a situação financeira dos grandes empresários detentores das maiores riquezas do planeta – estes, não trocam de níveis de mês a mês – são os que controlam todos que estão abaixo e o que devem consumir (ou até mesmo o tanto que devem consumir) – mostrando que, daí para baixo, ninguém é, literalmente, mais privilegiado do que eles – mas é claro que a “Administração” pode ser vista também como Deus – um Deus do velho testamento, talvez. Mais castigador e rígido – que quer alguma prova de que a humanidade pode ser boa.
Sendo assim, a descida que Goreng e Barath tentam fazer, para deixar os 50 primeiros níveis ficarem apenas um dia de jejum, enquanto que sobraria mais comida para os de baixo, representa, basicamente, a vida de Jesus – que tentava extrair a bondade e justiça das pessoas – os dois acabam tendo que lutar para que os mais gananciosos não toquem na comida, da mesma forma que precisam impedir os mais pobres de exagerarem no consumo; mostrando como o sistema atual em que vivemos é tão selvagem que a violência acaba sendo algo inevitável em certas situações, lamentavelmente – diante dessa alegoria, Galder Gaztelu-Urrutia introduz alguns detalhes riquíssimos: como os pecados capitais (a avareza do prisioneiro com a cama cheia de dinheiro, a luxuria do casal que faz sexo acima do nível de Barath ou os dois homens numa pequena piscina de plástico, ou pela própria gula, etc), as interpretações bíblicas pouco convincentes (o amigo de Barath que lhe dá a ideia de usar o pequeno doce como a “mensagem” para provar que existe bondade nos moradores do Poço) ou a constatação de Goreng de que existem muito mais níveis para baixo do que ele imaginou – uma reflexão forte sobre as classes sociais mais desfavorecidas que nós nem ao menos conhecemos ou imaginamos como são – afinal, nem todos sabem o que é conviver com a fome, como muitos países africanos convivem ou como as crianças da Síria lidam com a guerra, por exemplo.
Ao chegarem ao nível final (o 333, que provavelmente representa a santíssima trindade – Pai, Filho e Espirito Santo), Goreng e Barath encontram a filha de Miharu – e é interessante constatar que ela querer esconder a filha ali é justamente por ser um lugar em que ninguém queria estar – longe da ameaça dos homens – e assim, Goreng finalmente entende que a mensagem é a própria garota – um tipo de forma de mostrar que sacrificar sua vida pela de uma criança (ou a humanidade, igual na história de Jesus) é algo muito mais humano do que ficar um único dia de jejum – ou um único dia sem lucrar, como alguns empresários estão preocupados no momento aqui no Brasil – mesmo alguns deles tendo até bilhões em suas reservas.
A menina acaba sendo a resposta para o sistema – uma resposta para a Administração/Deus – de que, em meio a todas as precariedades em que vivemos, temos capacidade de sermos pessoas com uma solidariedade espontânea e sem vaidades – sem querer apenas se exibir (como algumas celebridades ou empresários também fazem por aí) – o que explica porque a consciência de Goreng (representada pela imagem de Trimagasi) o convence de que ele não deve subir junto com a menina – seu sacrifício torna-se parte da mensagem.
Todos esses detalhes fazem O Poço se mostrar um filme que não tem medo de escancarar suas alegorias – a intenção é realmente mostrar que muitas coisas óbvias estão sendo esquecidas – que a falta de governantes altruístas e responsáveis é um fator determinante para que não nos conscientizemos de que vivemos todos em um lugar brutal e extremamente desigual – onde o funcionamento do mercado parece ser mais importante do que nossas vidas – como dito logo no inicio, “existem três tipos de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem” – diante dessa crise do Covid-19, é hora de notarmos que nossos “representantes” não estão preocupados nem um pouco naqueles de baixo, e nem naqueles que acabam caindo. Uma triste reflexão que este longa da Espanha (um dos lugares com mais contaminados pelo coronavírus) quer tentar nos passar – antes que nosso mundo vire de vez algo idêntico ao que Goreng e seus companheiros enfrentam.