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    O Poço (Netflix)
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    O Poço (Netflix)

    O fundo do poço é mais embaixo

    por Pablo Miyazawa

    Se você me perguntasse hoje “qual filme devo assistir para relaxar e esquecer a crise do coronavírus?”, definitivamente minha recomendação não seria O Poço. Aliás, o fato de esse filme espanhol estar no topo da lista dos mais assistidos da Netflix no Brasil é de fazer pensar: ou o público brasileiro prefere válvulas de escape esquisitas para superar os problemas da vida real; ou tem muita gente que não anda tão preocupada assim. 

    Isso porque a premissa distópica de O Poço já seria bastante perturbadora se não estivéssemos passando pela situação dramática atual. A história se passa em uma prisão vertical com centenas de andares, cada cela sem janelas, abrigando dois presos cada. No meio, um enorme buraco (o tal poço, "el hoyo" no original) permite enxergar os andares superiores e inferiores. Não bastasse a organização atípica, a alimentação também é oferecida de modo inusitado: diariamente, uma única plataforma repleta de um verdadeiro banquete desce pelo buraco, a partir do andar mais alto (número zero) em direção aos andares inferiores.

    A pegadinha é que cada nível tem pouquíssimos minutos para se alimentar rapidamente enquanto a plataforma estaciona, antes que volte a se mover para baixo. Mais regras: a comida não é reposta; e é proibido estocar comida. Sim, acontece exatamente o que você está imaginando (e isso não é spoiler, o filme explica essa mecânica rapidamente): os prisioneiros dos andares superiores comem tudo o que podem e mais, deixando restos e migalhas para as pessoas dos níveis inferiores... até não sobrar nada para quem está bem no "fundo do poço”. 

    Essa rotina se desenvolve até o final de cada mês, quando os presos são embaralhados e alocados aleatoriamente em um novo andar, que pode ou não ser mais elevado que o anterior. O bom senso diz que, quando estão em andares mais altos, as pessoas se comportem melhor e racionem os recursos para dar conta de quem está embaixo. Mas ocorre exatamente o oposto: quem está por cima se lembra de como sofreu anteriormente e abusa dos novos privilégios, consumindo mais do que precisa (e até mesmo sabotando a comida), punindo quem é das castas inferiores. De acordo com a matemática política de O Poço, quanto mais baixo seu nível, maior a chance de passar fome. Não parece uma situação que experimentamos na vida real?

    É óbvio que O Poço é uma metáfora explícita sobre a selvageria proporcionada pelo capitalismo e a desigualdade social, mas é mais do que isso. Impressiona o tanto que o filme se conecta a esses tempos inéditos de confinamentos e restrições. Também é uma curiosa coincidência que sua estreia na Netflix tenha sido no final de março, no auge da ascensão da pandemia, sendo que sua primeira exibição pública foi no Festival de Toronto, em setembro passado, longínquos seis meses atrás. Assisti-lo hoje traz um sabor amargo e familiar demais aos sofrimentos do agora, dando ares de presente ao que deveria ser um mero escapismo sobre um futuro distópico. Isso explicaria "o fenômeno O Poço", que assim como tudo o que faz sucesso do dia para a noite, não tem tanto a ver com a qualidade do produto em si.

    Não que o filme não seja ruim, pelo contrário. A qualidade técnica é indiscutível e o design passa o recado da claustrofobia angustiante, com todo mérito para as boas escolhas de direção do estreante Galder Gaztelu-Urrutia. As atuações marcantes do elenco de origem espanhola também colaboram. Goreng (Ivan Massagué), o herói, é o retrato perfeito do processo de desumanização imposto por uma condição degradante. Entre as centenas de prisioneiros, ele é o único que demonstra empatia por quem está abaixo, mas isso de pouco adianta. Para transformar uma estrutura opressora e viciada, Goreng logo descobre, é preciso mais do que diálogo e boas intenções.

    Não apenas por sua temática sombria e incômoda, O Poço não cai bem em qualquer estômago. O filme jamais economiza nas imagens extremas para provar seu ponto -- violência gráfica e tabus como canibalismo, escatologia e estupro fazem parte do cardápio que a trama oferece até seu desfecho onírico, enigmático e sem soluções fáceis. Para quem busca um significado sem spoilers da cena final, basta pensar que estamos eternamente na esperança de que algo bom aconteça, sem ter certeza de que vai mesmo acontecer. Mas a resposta talvez nunca venha porque o buraco é fundo demais.

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