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    Happy as Lazzaro
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Happy as Lazzaro

    Toda bondade será castigada

    por Bruno Carmelo

    Como é estranho, este Lazzaro Felice! O novo projeto da diretora Alice Rohrwacher navega por tempos e referências tão variados quanto surpreendentes. A captação em Super 16 traz um granulado que não se vê mais nos filmes de grandes festivais há algum tempo. As bordas arredondadas da tela, o escuro profundo das cenas noturnas, os ruídos da natureza produzidos, na verdade, pela boca dos moradores... Tudo é curioso, deslocado, mas ao mesmo tempo fascinante. O que estamos vendo aqui, ao certo?

    Esta pergunta pode atravessar toda a experiência do filme, que se divide em duas partes: na primeira, a família de Lazzaro (Adriano Tardiolo) vive numa cidade italiana isolada do resto do mundo, em regime de servidão. Estamos provavelmente nos anos 1980, embora a data nunca seja precisada. Lazzaro, o tolo do vilarejo, é um garoto bondoso, mas sem vontades. Ele faz o que lhe mandam, de bom grado. Por isso, trabalha forçado, ajuda quem o despreza. Quando chega com o café, alguém responde: “Não é nada. É só o Lazzaro”.

    Assumindo a sua vertente bíblica, a segunda parte corresponde à ressurreição do garoto. Morto num acidente banal – sozinho, escondido dos olhos de todos –, ele volta nos dias de hoje. Rohrwacher busca compreender de que modo a configuração urbana contemporânea se compara com a exploração rural de antes, e encontra equivalências na ideia da miséria. Os camponeses de ontem são os mendigos de hoje, talvez vivendo em situação ainda mais precária. Lazzaro, sempre com a mesma idade, observa sem compreender: Tardiolo efetua uma composição vazia, de olhos arregalados, sugerindo uma presença ausente. O garoto está lá, mas não consegue entender nada à sua frente. Ele é um corpo em deslocamento; sua presença no mundo não faz diferença a ninguém.

    Lazzaro Felice avança sua narrativa em cenas microscópicas, nas quais o banal é privilegiado em relação às ações. Diversas cenas com a família comendo, brigando ou trabalhando se sucedem, criando um cenário palpável, mas também um curioso sentimento de estagnação, que corresponde bem àquelas vidas repetitivas. O realismo da câmera contrasta com a possibilidade da fantasia (ou do milagre), incluindo pequenos elementos deslocados – ruídos voluntários na representação. Desde As Maravilhas, a cineasta trabalha com um ideal de magia analógica, um kitsch retrô que impregna cenários e figurinos, mas se pretende discreto, como no caso da marquesa. Estamos no meio do caminho entre fábula, realismo histórico e crônica social.

    O filme encontra as suas melhores cenas no terço final, quando se comprova que a bondade e ignorância de Lazzaro não têm espaço no mundo de hoje. Neste filme, mesmo os gestos de violência são filmados no limite do cômico, do surreal. A trama termina de modo alegórico, e talvez deixe a impressão de ter atravessado a tela sem esclarecer todas as suas metáforas. Algumas cenas parecem sobrar, outras não se encaixam. A intenção pode ser exatamente essa: orquestrar uma narrativa não linear, uma ficção de estranhamentos, que necessitaria de algumas revisões para começar a decantar. O que aconteceu ao longo destas duas horas? Quais são as inúmeras leituras tiradas a partir dela? Lazzaro Felice não se desvenda com facilidade. E talvez essa seja a sua principal qualidade.

    Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.

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