Alice através do espelho
por Bruno CarmeloComo é bom encontrar no cinema uma personagem tão complexa quanto Nahla. A jovem síria é apresentada como um caldeirão de vontades opostas: ora ela se comporta como adolescente mimada na casa da mãe, ora aspira à vida independente sem dar satisfações aos mais velhos. Ora ela se interessa pela figura de homem disposto a se casar com ela e levar toda a família aos Estados Unidos, ora demonstra prazer em humilhá-lo, desdenhando de seu caráter salvador - e depois se entristeca quando ele prefere a irmã de Nahla para o matrimônio. Nahla também quer se casar, porque é isso que as jovens fazem dentro da religião islâmica, mas deseja permanecer livre, porque não está apaixonada por ninguém. Enquanto isso, a descoberta de um grupo de prostitutas morando dois andares acima do seu fornece uma alternativa tentadora.
Nahla é vivida com força impressionante por Manal Issa, que já tinha se destacado em Destemida e Nocturama. A atriz confere à protagonista uma fúria represada: por trás do silêncio, existe evidente raiva direcionada tanto às regras da sociedade quanto à guerra civil que assola as ruas. Por ser mulher, ela se vê confinada nos espaços domésticos, enquanto os homens ocupam as ruas. Na verdade, a batalha de Nahla para usufruir de seu corpo como bem entende corresponde a uma guerra pessoal. Issa demonstra habilidade suficiente para transitar entre uma realidade palpável (vide as imagens documentais de bombas e manifestações) e o sonho: ela diz possuir um amante com quem se encontra regularmente, no entanto, a estética diferente dos encontros amorosos e o fato de nunca vermos este homem fora do quarto levam a questionamentos sobre a sua existência. Ele seria apenas imaginado?
O cruzamento entre fantasia e realidade constitui o principal desafio de Meu Tecido Preferido, que precisa manter a consistência de ambos os registros e propor uma transição fluida entre eles, sem optar por um caminho único ao final. O tecido citado no título diz respeito tanto aos trapos que Nahla guarda para seu enxoval - ou seja, um símbolo da tradição - quanto os vestidos de cetim rosa que utiliza na cama com o amante - sinal, neste caso, de liberdade. Se o espectador questionar a lógica narrativa, pode encontrar pontos inverossímeis na construção das irmãs ou deste bordel dentro de um prédio familiar, o que não desperta a indignação de nenhuma das pessoas religiosas ao redor. No entanto, os espaços funcionam como um passeio pela psique da jovem, uma jornada interna ao invés de uma representação realista.
A diretora Gaya Jiji - que curiosamente empresta seu nome à bela e materna cafetina da trama - opta por um estilo discreto: a câmera segue Nahla por todos os lugares, em movimentações fluidas e quase imperceptíveis, adequadas a cada passo da personagem entre cômodos, corredores e escadas. Não há um arroubo de estetismo, uma orquestração da câmera que chame atenção a si mesma. O mesmo vale para a iluminação simples, sem demarcar em excesso a diferença entre a casa e o bordel, ou o tratamento dos sonhos/delírios da protagonista, em cores mais frias e ritmos mais lânguidos, mas ainda plausíveis naquele contexto.
A discrição constitui ao mesmo tempo uma virtude e uma limitação: o resultado certamente ganharia maior relevo caso explorasse tantas simbologias através de escolhas imagéticas mais inventivas. Do mesmo modo, a presença de um soldado dentro do prostíbulo, dotado de um curioso fetiche por lendas, é mal explicada. É uma pena que o filme não aprofunde este símbolo, pois o personagem constitui o principal elo de ligação entre a guerra civil e os espaços domésticos. Mesmo assim, o clímax do espelho, quando Nahla é obrigada a se confrontar a sua imagem, a seus desejos sexuais e seus possíveis sonhos, carrega uma força impressionante. Jiji apresenta um filme de psicologias profundas e imagens tímidas. O resultado é instigante, ainda que pouco surpreendente.
Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.